sexta-feira, agosto 26, 2005

A brecha no pilar pode tornar-se maior


Rogério Buratti, o advogado recentemente ouvido pela polícia civil e pelo Ministério Público acerca de mais um episódio de corrupção na política brasileira, (ver crónica Uma brecha no pilar), prestou depoimento ontem na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Bingos.
Esta comissão, criada recentemente, apareceu na sequência de um caso que estava congelado, mas que os recentes escândalos financeiros envolvendo políticos e partidos fizeram reanimar.
Conta-se com poucas palavras. Em 2002, Waldomiro Diniz, nessa altura presidente das Loterias do Estado do Rio de Janeiro (Loterj) e integrante da equipa da governadora do mesmo Estado, Benedita da Silva, do partido no poder, Partido dos Trabalhadores (PT), foi filmado secretamente quando pedia dinheiro para si e para a campanha eleitoral do actual presidente da república, Luís Inácio Lula da Silva, a um empresário de jogos não legalizados.
Após a eleição, Waldomiro entrou para o círculo da Administração Lula, na qualidade de assessor do Chefe da Casa Civil, o então ministro José Dirceu. Pouco depois a gravação foi divulgada e Waldomiro demitido.
Mais algum tempo decorrido, o próprio José Dirceu, apesar de amigo do presidente, teve de ser afastado, pois as denúncias que surgiram sobre grandes vigarices levadas a cabo pelo PT, ao qual ele pertence, e algumas das suas mais destacadas figuras, começaram a ser comprovadas. José Dirceu é acusado de envolvimento pleno em tudo isso.
Quando Waldomiro foi corrido do Palácio do Planalto, a sede do governo, a questão caiu no rol dos esquecidos, por acordos tácitos entre governistas e oposicionistas. A ética não ilumina a prática política brasileira.
Mas ao virem a público, em Maio passado, as primeiras notícias da existência de um extenso esquema de subornos na empresa estatal Correios e Telégrafos do Brasil, em que partidos da base de apoio ao governo, com o PT à cabeça, e, também, da oposição, estavam enterrados até ao pescoço, e ocorreram as primeiras movimentações para a criação de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para os Correios, os oposicionistas ameaçaram veladamente que se a comissão de inquérito fosse criada, desenterrariam o caso Waldomiro Diniz.A CPI dos Correios entrou em funções a todo o vapor, e logo passado pouco tempo surge a dos Bingos.
A comissão procura agora aprofundar uma investigação que ponha a nu toda a cumplicidade entre dinheiro do jogo, para mais, ilícito, campanha eleitoral e benefícios pessoais.
Não parece que seja uma obsessão pela legalidade e pela moralidade o que motiva a maioria de senadores e deputados nestes processos de averiguações. Salvo as honrosas excepções de bem intencionados, vinga a tentativa de aproveitamento político, pessoal ou partidário, cujos refreamentos para salvar as aparências são mantidos a custo e nem sempre alcançados.
Voltando ao depoimento que constitui o assunto desta crónica, Rogério Buratti desempenhou o cargo de secretário municipal em Ribeirão Preto, cidade do Estado de São Paulo, no tempo em que o actual ministro da Fazenda, António Palocci, era prefeito (presidente do município).
Nas declarações que prestou agora às autoridades enquanto esteve detido, revelou que a prefeitura recebia mensalmente 50 mil reais em comissões da principal empresa de colecta de lixos da cidade, Leão Leão, a grande e habitual ganhadora dos processos de licitação da prefeitura. Os dinheiros seriam canalizados para o PT, na pessoa do seu tesoureiro Delúbio Soares, hoje arredado de funções e suspenso por tempo indeterminado, devido aos apuramentos que têm sido feitos no que respeita à sua conduta, enquanto responsável pelas finanças do partido.
As declarações de Buratti deram origem a uma entrevista colectiva por parte do ministro Palocci que tudo desmentiu categoricamente.
Por isso, a sessão de ontem, aberta à comunicação social, criou bastantes expectativas.
Durante cinco horas e meia o advogado respondeu com serenidade às perguntas que o relator e os parlamentares lhe dirigiram. Tal qual fizera o ministro Palocci perante a imprensa no domingo passado. Durante cinco horas e meia o advogado passou para o exterior uma imagem de honestidade e transparência. Tal qual fizera o ministro Palocci perante a imprensa no domingo passado.
Antes de mais, as respostas que deu permitem agora rectificar ou aclarar algumas afirmações contidas na crónica citada no início.
A delação premiada, redução de pena em troca de revelações, que contribuiu para a libertação, foi sugerida por sua livre iniciativa durante os interrogatórios, não por imposição policial ou do ministério público.
A saída da secretaria municipal que ocupava, em 1993, deveu-se a um seu pedido de exoneração, e não a afastamento compulsivo por parte do prefeito, aquele que é hoje ministro da Fazenda, António Palocci.
Após a sua saída, não passou de imediato a integrar os quadros da Leão Leão, mas só no fim de quatro anos.
Os telefonemas recentes e confirmados entre ele e Palocci datam de 2003, com este já à frente do ministério da Fazenda.
Quanto ao resto, Rogério Buratti repetiu, agora às claras, todas as denúncias feitas à polícia civil e ao Ministério Público, ou seja, que no tempo em que Palocci era prefeito de Ribeirão Preto, corriam comissões de 50 mil reais por mês, pagas pelo grupo Leão Leão, responsável pela colecta de lixo na cidade. O dinheiro seria encaminhado para o PT de São Paulo, para a pessoa do tesoureiro de então, Delúbio Soares.
Enfim, poderá dizer-se que era, literalmente, dinheiro de lixo.
Buratti reiterou que seria quase impossível, para não dizer de todo impossível, que Palocci desconhecesse o esquema. Deixou entender que o prefeito sabia do que se passava, mas não queria interferir para não prejudicar o partido, com a consciência semi-tranquila de que esse dinheiro não o beneficiava directamente.
Será esta a lógica do presidente Lula da Silva, ao garantir, por interpostas pessoas, que de nada sabia do actual esquema de corrupção de âmbito nacional, consumado pelo seu partido?
Finalmente, Buratti reafirmou que os impérios do jogo de São Paulo e Rio de Janeiro contribuíram para a campanha do presidente Lula, em 2002. O primeiro, com um milhão de reais. O outro com quantia superior.
Tudo isto já fora divulgado anteriormente, pelo próprio Ministério Público. Não houve, portanto, nos depoimentos de ontem, o rebentamento de petardos que alguns supunham possível, e outros desejavam.
É verdade que Buratti não apresentou provas documentais do que disse. Em contrapartida, defende-se, sustentando que forneceu as pistas suficientes para que uma investigação cuidada e conduzida com perícia possa comprovar tudo o que declarou.
As opiniões dividem-se, consoante os interesses pessoais e políticos do momento, quanto ao efeito destas cinco horas e meia de exposição e perguntas e respostas.
Na Comissão, o advogado foi "acusado" de tratar muito bem Palocci, e de ser por este muito bem tratado. Dir-se-ia que há um acordo de cavalheiros entre os dois, para encobrimento mútuo ou, pelo menos, estabelecimento de limites àquilo que cada um diz. Parece que um e outro apresentam apenas metade dos factos.
Buratti faz eco do que Palocci dissera, dias atrás: já foram amigos, mas hoje não são, porque a amizade, segundo eles, pressupõe uma presença continuada, o que não acontece.
Independentemente da validade deste critério discutível, a verdade é que Buratti falou pelo menos 12 vezes, entre Janeiro e Agosto de 2003, para o telefone de Palocci no ministério. Indagado, responde que o tema da conversa era trivialidades, num caso, e a saúde de um amigo comum, no outro. Estranha frequência e temática para duas pessoas que dizem não ser amigas.
Rogério Buratti deveria ter deposto na quarta-feira passada, mas no dia anterior desapareceu sem deixar rasto. No fim da tarde, os seus assessores divulgaram a notícia de que estava doente. A CPI dos Bingos avisou que nomeariam uma junta médica para averiguar do tipo de doença. Na quarta-feira, Buratti tranquilizou a CPI com a confirmação da sua presença na quinta-feira, o que aconteceu.
Entre os parlamentares e a comunicação social, há quem suspeite, e investigue, que se terá realizado uma reunião na terça-feira, dia do desaparecimento de Buratti, entre este, com seus representantes, e um enviado, ou mais, de Palocci, a título de compor o cenário.
Especulação? Aguardemos. Tudo se há-de saber porque, como garante o presidente Lula da Silva, a verdade virá à tona da água.
Oxalá...
Quanto a Lula, e por falar nele, enquanto Buratti depunha na CPI dos Bingos, discursava no Conselho Nacional para o Desenvolvimento Económico e Social, parecendo querer colher para si o protagonismo do dia e empalidecer as declarações de Buratti.
Comparando-se com vários presidentes, assegurou que não faria como Getúlio Vargas, que acabou cometendo suicídio, nem como Jânio Quadros, que não chegou ao fim do mandato por renúncia, nem, tampouco, como João Goulart, afastado do poder por um golpe militar.
A situação actual exigiria mais cautela do presidente nas afirmações que faz com tal veemência.
E termina as comparações recordando Juscelino Kubitschek de Oliveira, com quem faz questão de ser identificado, dizendo que terá paciência, paciência e mais paciência.
O presidente parece não estar a entender que quem vai perdendo a paciência é a nação.
E parece não entender, também, que a paciência começou a esgotar-se na economia do país. Que o digam os resultados espelhados nas cotações de moeda e no desempenho das Bolsas de Valores. Que o digam os índices de desemprego que não descolaram, apesar de, nesta época, ser habitual uma oferta maior de postos de trabalho, com vista a um eventual aumento de consumo do Natal e do fim de ano. Que o digam os valores respeitantes ao investimento, retraído e medroso.
Lula, ora diz que a economia está de perfeita saúde, ora alerta para a sua vulnerabilidade, de acordo com uma estratégia de quem aparenta não ter estratégia alguma.
O caso Palocci e as suas consequências, num ou noutro sentido, podem abrir ainda mais a brecha deste importante pilar que é a economia. Mas, convenhamos, constituem apenas um dos vectores capazes de influenciar o seu comportamento, esteja ela forte ou fragilizada. Outro parâmetro, bem mais importante, mede a confiança do país e no país, quanto à prática do governo e das instituições, uma prática que se pretende com objectivo social, decidida, honesta e transparente. E essa prática, neste momento, está sobejamente comprometida.



quarta-feira, agosto 24, 2005

Uma nova personagem, mais lenha na fogueira


Chama-se António Oliveira Claramunt, mas é conhecido no Brasil inteiro por Toninho da Barcelona.
Originário da vila Barcelona, conjunto habitacional situado numa pequena cidade a poucos quilómetros de São Paulo, desde muito novo conviveu com o mundo do contrabando de divisas, em particular de dólares americanos.
Também cedo se iniciou na actividade, e aprendeu depressa. Quando o pai adoeceu gravemente, tomou conta do negócio e num instante se tornou no maior doleiro do país.
Doleiro, como é fácil de entender, designa de forma suave, tão à moda brasileira, o traficante de moeda.
A empresa de que é sócio proprietário, a Barcelona Tour Viagens e Turismo Lda, autorizada a funcionar como agência de turismo e a operar como casa de câmbios no mercado de taxas flutuantes, movimentou, entre 1996 e 2002, 500 milhões de dólares.
Por via dessa actividade, viu-se envolvido no caso Banestado, um escândalo que data do fim dos anos 90.O Banestado, um banco com sede em Curitiba, a capital do estado do Paraná, na região sul, foi alvo de um processo investigatório por transferências clandestinas para o exterior, entre 1996 e 1999, calculadas em 30 bilhões de dólares americanos, naquilo que ficou conhecido como operação Macuco. Os principais clientes nessa trama parece terem sido políticos, empresários e doleiros. Estes últimos, por sua vez, serviam políticos e empresários.
As remessas eram dirigidas à agência do banco em Nova York, e daí canalizadas a paraísos fiscais, deixando atrás de si um rastro de lavagem de dinheiro e evasão fiscal.
Para investigar o delito e apurar culpados, pelo menos supostamente assim se pretendia, foi criada uma comissão parlamentar de inquérito, a CPI do Banestado. José Mentor, relator desta comissão, era (e é) membro do partido no poder, o Partido dos Trabalhadores (PT).
Toninho da Barcelona operara durante anos remessas clandestinas para políticos e partidos, de que o PT não foi o pior cliente, nem o mais recente. Por isso, José Mentor não estava muito interessado em que ele fosse ouvido naquela CPI, bem pelo contrário.
Porém, sujeito a algumas pressões, embora pouco consequentes, como veio a verificar-se, convocou o doleiro para depor em 20 de Abril do ano passado. Fê-lo, no entanto, com apenas duas horas de antecedência, para que ele não pudesse estar presente. Assim aconteceu, e Toninho de Barcelona nunca mais foi chamado à comissão.
O então presidente da CPI, senador Antero Paes de Barros, acusa hoje o relator: "Houve um estranho afrouxamento na convocação do Toninho. O relator parecia não ter interesse no depoimento".
Pois claro que não tinha, como não tinha noutras coisas. No relatório de conclusão, suprimiu todo o capítulo referente ao Banco Rural, nessa altura suspeito de comprometimento no envio de remessas para o exterior, e hoje enrolado em todo o esquema de corrupção política que diariamente se desnuda com novas cenas e novos protagonistas.
Toninho da Barcelona acabou condenado a 25 anos por evasão de divisas, e metido no presídio Adriano Marrey, em Guarulhos, município a nordeste da região metropolitana de São Paulo, a pouco mais de 15 quilómetros do centro desta cidade, capital do estado com o mesmo nome.
Agora, Mentor diz que não conhece o doleiro, mas isso não evita que Toninho da Barcelona fale. E ele já começou a falar – e a fazer tremer.
Revelou que o PT faz encaminhamentos ilícitos de dinheiro para fora do Brasil desde a primeira campanha do actual presidente da república, Luís Inácio Lula da Silva, ou seja, 1989. Segundo ele, nos anos 90 as operações expandiram-se em direcção a dois receptadores: o Trade Link Bank, fundado e mantido pelos directores do Banco Rural, no paraíso fiscal das Ilhas Caimão, no Caribe, e uma empresa criada no Panamá, outro lugar de delícias para fuga ao fisco.
Em recentes depoimentos, Duda Mendonça, o publicitário que há muito trabalha para o PT e tem sido o responsável de propaganda das campanhas de Lula da Silva, comprovou que o dinheiro que recebeu de honorários por estes serviços fora depositado pelos clientes no Trade Link das Ilhas Caimão.
Toninho da Barcelona é um homem novo, tem família constituída, e quer ver reduzida a sua pena. Com esse fito, no dia 24 de Junho último pediu autorização para dar uma entrevista colectiva (conferência de imprensa) onde faria revelações importantes.
Curiosamente, ou nem tanto, nesse dia estalou uma rebelião no presídio, e o doleiro foi acusado de ser um dos cabecilhas. Apesar de novato prisional, sem experiência de organização de motins, apesar de ter sido apontado como instigador apenas de forma anónima e vaga, apesar de nesse dia esperar a primeira visita da filha de 14 anos, as autoridades consideraram-no culpado e, em consequência, transferiram-no para uma prisão de segurança máxima, em Avaré, no interior do estado, a 270 quilómetros de São Paulo.
Mesmo possuindo curso superior, as autoridades não lhe concederam o tratamento preferencial, em termos de alojamento, previsto na Lei. Pelo contrário, a cela que lhe destinaram é de condições inferiores, e só tem direito a banho de sol uma vez por semana. Visitas íntimas, nem pensar. Para além disso, o director de disciplina da cadeia pediu ainda ao juiz que determinasse o seu internamento em cárcere isolado, por ser "pessoa de altíssima periculosidade".
O doleiro queixa-se de maus tratos físicos e psicológicos, e teme pela vida. Diz que a sua situação piorou quando transmitiu a intenção de falar publicamente sobre o que sabe quanto à evasão de divisas no Brasil.
O advogado que o defende, Ricardo Sayeg, conta que Toninho foi obrigado a assinar na prisão um insólito documento em que se responsabiliza pela sua integridade física. Considerando o seu cliente um preso político, Sayeg diz que vai apelar para a Amnistia Internacional. Segundo ele, Barcelona foi interrogado por nove delegados da Polícia Federal sem a sua presença. Por outro lado, teve a visita, ao que parece, ilegal, de pessoas que diziam ser advogados do PT, e pretendiam apurar até que ponto iam os seus conhecimentos quanto às movimentações clandestinas de dinheiro.
Em primeiras declarações já prestadas em São Paulo a uma delegação da Comissão Parlamentar de Inquérito da estatal Correios, empresa onde se desencadeou a onda de escândalos político-financeiros que estão a ser investigados, envolvendo altas figuras do governo e do PT, Toninho da Barcelona denunciou pessoas como Márcio Tomaz Bastos, ministro da Justiça, José Dirceu, ex-ministro chefe da Casa Civil de Lula e amigo íntimo do presidente (pelo menos foi, até à data do afastamento do cargo por envolvimento naqueles escândalos), José Janene, líder do Partido do Progresso (PP) na Câmara dos Deputados, Henrique Meireles, presidente do Banco Central (o banco emissor do Brasil) e José Mentor, amigo de Dirceu e já acima referido como relator da CPI do Banestado. O primeiro admite transacções, mas protesta que foi tudo feito na legalidade. Só não se percebe por que razão as terá feito com o doleiro, e não com uma instituição idónea. Quanto aos outros, dizem não conhecer o delator.
Mesmo com todas as reservas que o contexto aconselha, afigura-se imperioso, urgente e importante ouvir o doleiro Toninho da Barcelona. Foi essa conclusão a que chegou a CPI dos Correios, onde ele vai ser inquirido brevemente. Até lá, já muita gente começou a mexer-se com medo, e muita gente com medo começou a ficar paralisada.Como não há fumo sem fogo, aguardemos. Assim sobreviva Toninho da Barcelona.



domingo, agosto 21, 2005

Uma brecha no pilar


Foi preso na passada quarta-feira o advogado brasileiro Rogério Tadeu Buratti, em São Paulo, acusado de formação de quadrilha, lavagem de dinheiro e destruição de provas.
Buratti foi assessor parlamentar do ex-ministro José Dirceu, envolvido nos escândalos político-financeiros que desabaram sobre o país, e desempenhou funções de secretário municipal na cidade de Ribeirão Preto, estado de São Paulo, no tempo em que o actual ministro da Fazenda do Brasil, António Palocci, membro do Partido dos Trabalhadores (PT), no poder, ocupava a presidência do município.
Envolvido numa suposta trama de ilegalidades cometidas em licitações de obras públicas durante 1993, acabou demitido por Palocci no ano seguinte. No entanto, os motivos da demissão, baseados em gravações, nunca chegaram a ser confirmados, nem pelas buscas efectuadas pela autarquia, nem pelas levadas a cabo pelo Ministério Público, segundo declarou o próprio Palocci em entrevista colectiva (conferência de imprensa) na manhã de hoje. Apesar disso, Buratti jamais foi readmitido.
Ingressou, então, numa grande empresa de colecta de lixo em Ribeirão Preto, a Leão Leão, e, paralelamente, foi sócio de Juscelino Dourado, de quem é padrinho de casamento. Dourado, que ocupa, actualmente, o cargo de chefe de gabinete do ministro António Palocci, vem referido na imprensa como tendo autorizado a compra de um aparelho de escutas telefónicas para o gabinete.
De acordo com o noticiário da TV Record no dia da detenção, o conhecimento de telefonemas recentes entre Buratti e Palocci teria criado algum mal-estar no Palácio do Planalto, sede de um governo francamente fragilizado pelos escândalos de corrupção que, desde Maio deste ano, têm caído como chuva por todo o Brasil, originado a divulgada imagem de mar de lama.
Rogério Buratti solicitou ao Ministério Público de São Paulo o benefício de delação premiada, em troca de depoimentos, ou seja, redução de pena para fazer revelações. Foi aceite, e sexta-feira, dia 19, encontrava-se na rua, depois de ter passado à Justiça uma série de denúncias que abanaram o país, mais uma vez, como um terramoto.
Basicamente, Buratti declarou que entre 1993 e 1996 Palocci, como presidente da autarquia, recebeu 50 mil reais por mês de propinas (comissões) da empresa de colecta de lixo Leão Leão, de Ribeirão Preto. O dinheiro teria sido repassado para o directório de São Paulo do Partido dos Trabalhadores, na pessoa do seu tesoureiro, Delúbio Soares, afastado de qualquer cargo no PT e suspenso por tempo indeterminado na sequência dos escândalos de corrupção que estilhaçam o país.
As verbas seriam utilizadas para financiamento de campanhas políticas.
O esquema estaria já infiltrado em mais três cidades do estado, e quase se instalou na capital, São Paulo, durante a presidência municipal de Marta Suplicy, também do PT, que em 2004 perdeu a autarquia para José Serra, do PSDB (Partido Social Democrata Brasileiro).
A talhe de foice, divulgou ainda que os jogos do bingo de São Paulo e do Rio de Janeiro canalizaram dinheiro, alguns milhões de reais, para a campanha do presidente da república, Luís Inácio Lula da Silva.
Face à acusação, António Palocci nega tudo, gesto a que os políticos brasileiros na berlinda já habituaram o povo, independentemente da veracidade, ou não, dos factos em apuramento na Justiça.
O ministro passa ao ataque, e, em nota de repúdio, acusa o Ministério Público (MP) de atropelar regras jurídicas, ao divulgar os depoimentos. O MP, por seu lado, contesta a acusação, alegando que as declarações de Buratti não estão sob a alçada do segredo de justiça, e que, pelo contrário, devem ser do conhecimento da imprensa e da sociedade, a bem da democracia.
A empresa visada, Leão Leão, confirma que contribuiu para a campanha de Palocci, mas dentro do quadro da Lei eleitoral (logo, Palocci ao negar tudo está a criar suspeição).
O presidente Lula tomou conhecimento das denúncias quando se encontrava em mais um pico da sua actual febre, inaugurações, desta vez em São Paulo. Não comentou, mas fez alguns arranjos no programa estabelecido. Um deles foi o cancelamento do discurso que iria ser proferido perante autarcas da região.
Enquanto isso, o Palácio do Planalto mobilizou-se para uma protecção blindada ao timoneiro da economia nacional, Palocci. Vários ministros estabeleceram contacto telefónico com líderes da oposição, recomendando cautela na apreciação dos factos, ou seja, que não fizessem mais ondas no já tão agitado mar de broncas que submerge o Brasil.
Contudo, o próprio PT, dividido, não cerrou fileiras em torno do seu militante Palocci. Há quem tente deitar alguma água na fervura, mas outros, os que procuram lavar as manchas do partido, como o secretário-geral, Ricardo Berzoini, exigem explicações imediatas. Berzoini afirma mesmo que o país tem maturidade suficiente para suportar uma eventual substituição do ministro da Fazenda. Tal posição, vinda donde vem, poderá ser, por si só, reveladora.
O vice-presidente, por seu lado, declara que, até prova em contrário, todo o cidadão é honesto, mas, significativamente, não se empenha numa defesa pessoal e peremptória do ministro.
Os mercados financeiros já foram afectados, com uma alta espectacular do dólar americano, a maior em 15 meses, e queda da Bolsa de Valores.Na penúltima crónica aqui escrita, Mar de lama agitado, em que o assunto Rogério Buratti já vinha a lume, fazendo eco de uma notícia, expressava a opinião de que a economia é o elo que tem ajudado a manter alguma integridade residual na debilitada cadeia do governo. Se também ela for atingida pela epidemia que vem destroçando o país, então a derrocada definitiva do projecto Lula/PT, para o bem e para o mal, poderá ser irremediável e irreversível.
O promotor que investiga o caso informou ontem, segundo a CBN (Central Brasileira de Notícias), que os documentos analisados e os factos inquiridos constituem prova concludente de que existiu um esquema de arrecadação ilegal de dinheiro em Ribeirão Preto e noutras cidades, segundo os moldes revelados por Rogério Buratti, embora não haja provas contra Palocci. O processo vai ser enviado ao Supremo Tribunal Federal.
Hoje, pouco depois do meio-dia, Palocci deu uma entrevista colectiva (conferência de imprensa), no auditório do Ministério da Fazenda, em Brasília.
Começou por saudar os órgãos de comunicação social e o trabalho desenvolvido, mostrou-se cordial, e quase se fantasiou de sedutor em relação à imprensa.
O ministro, que é médico de profissão e dirige o ministério da Fazenda desde Outubro de 2002, num discurso de 25 minutos, com a tranquilidade que caracteriza o seu perfil, fez o auto-elogio do trabalho realizado, declarou a economia de perfeita saúde e melhor que nos anos anteriores (quando o PT não era governo, claro), apesar de os especialistas explicarem que os progressos verificados se devem essencialmente, ao aumento das exportações, e não a reformas profundas da política económica, e enalteceu, por diversas vezes, a actuação do presidente Lula da Silva, defendendo que este de nada sabia sobre o esquema de corrupção implantado pelo PT.
Disse que antes do discurso falara com o presidente, pondo o seu lugar à disposição, temporária ou definitivamente, e do Palácio do Planalto trouxe um recado, por certo dirigido à oposição e à ala esquerda do PT: Lula da Silva não autorizaria o seu afastamento, uma clara alusão ao caso José Dirceu, ex-ministro chefe da Casa Civil, cuja cabeça fora pedida, e oferecida, na sequência dos subornos e das recolhas ilícitas de verbas partidárias, acontecimentos que estão a ser investigados desde Maio.
Projectando uma imagem de segurança, honestidade e transparência, o ministro negou de forma categórica todas as acusações de que está a ser objecto, tanto por Rogério Buratti, como por alguma imprensa. Rejeitou que tenha recebido, ou tenha autorizado que alguém recebesse, recursos de forma ilícita para actividade partidária.
Ao afirmar ser impossível a existência de um esquema desse tipo sem conhecimento de quem dirige o órgão, seja autarquia, ministério, ou outro, inadvertidamente colocou em cheque o presidente Lula da Silva, que, chefe máximo, sempre tem negado todo e qualquer conhecimento dos gigantescos esquemas de suborno e de arrecadações ilegais.
Confirmou que recebeu contributos da empresa Leão Leão, e de outras, mas tudo de forma legal e com registos que podem ser consultados.
Esclareceu que o contrato de colecta de lixo com a Leão Leão é anterior à sua tomada de posse como presidente da autarquia de Ribeirão Preto.
Rebateu alguns pontos de uma reportagem da revista Veja, a que levantou o véu de todo o processo de corrupção, com matérias publicadas em Maio, reportagem essa onde se tentava provar que Rogério Buratti tem hoje influência na agenda do ministério, conseguindo marcação de entrevistas.
Negou que ele ou o chefe de gabinete, Juscelino Dourado, tenham feito diligências para a compra de um gravador de escutas telefónicas.
Enfim, negou todas as denúncias feitas por Buratti, e voltou a acusar o Ministério Público de atropelo jurídico, por ter divulgado antes do tempo, em seu entender, as declarações do ex-secretário municipal. A sua indignação, embora serena, estava acrescida pelo facto de se ter colocado, segundo disse, à disposição do Procurador Geral de Justiça do Estado de São Paulo, Rodrigo César Rebello Pinho, para ajudar a esclarecer os factos.
Sem mostrar ressentimentos para com Buratti, admitindo, até, que as respectivas famílias tiveram, em tempos, relações de amizade e se visitavam, desculpabilizou-o, até certo ponto, dizendo que desconhece as razões por que ele procedeu assim. Justificou-o, em parte, aceitando que a situação de constrangimento em que Buratti se encontrava, preso, algemado, o possam ter levado a fazer denúncias "sem propósito".
Depois da exposição, submeteu-se, durante quase duas horas, às perguntas dos jornalistas que, de resto, o pouparam bastante.
Ninguém perguntou, por exemplo, o que Palocci teria a dizer sobre os recentes telefonemas entre ele e Rogério Buratti. Ninguém questionou o facto de, sendo ele o responsável máximo pelo ministério da Fazenda, e sendo este ministério responsável pelo controlo das operações financeiras do país, aparentemente nunca ninguém o ter informado das movimentações milionárias que se faziam dentro do país (e para fora do país). Muito estranho, para quem defende que é difícil esconder determinadas operações ao coordenador maior de um órgão público. Ou terão informado? Se sim, que medidas foram tomadas? Parece que nenhumas, atendendo ao estado a que as coisas chegaram.
Sem rejeitar perguntas, fez, no entanto, muitos jogos de cintura, respondendo a algumas delas com demagogia, contornando e iludindo outras, esquivando-se de outras ainda, e aproveitando a mais pequena oportunidade para desviar o tema corrupção, quase nada aflorado, crise ainda menos, e, em seu lugar, distribuir pequenas lições de economia.
A maioria das respostas destinou-se a tranquilizar o mercado. Aliás, não foi por acaso que o pronunciamento se realizou num domingo, dia em que os mercados financeiros se encontram encerrados.
As reacções ao discurso do Ministro da Fazenda foram tão imediatas quanto variadas.
O Procurador Geral de Justiça do Estado de São Paulo, César Pinho, pouco depois, em entrevista colectiva, reiterou a confiança nos seus promotores, com quem se solidarizou, repetiu que o caso em apreço não é segredo de Justiça, logo, não houve qualquer atropelo na divulgação do depoimento de Buratti, e que o processo vai ser enviado ao Supremo Tribunal Federal para apuramento do grau de veracidade das ocorrências narradas por Buratti.
César Maia, o prefeito do Rio de Janeiro (presidente da câmara, em Portugal), do Partido da Frente Liberal (PFL), talvez dos partidos da oposição o mais acirrado inimigo do governo, disse estar cada vez mais convencido do comprometimento de Palocci no processo revelado à Justiça por Buratti. E, na página que mantém na Internet, o autarca afirma que o ministro das finanças mentiu quando disse no seu discurso que fora do prefeito anterior o contrato de licitação para recolha de lixo em Ribeirão Preto. Conforme documento apresentado nessa página, verifica-se que Palocci fez, de facto, licitação no seu mandato, mais precisamente em 2002, para o aterro e para a colecta do lixo reciclável e da Saúde. Ganhou a firma Leão Leão num contrato de cerca de 42 milhões de reais. Esquecimento grave do ministro, para tamanha verba.
Ricardo Berzoini, o secretário-geral do PT, que ontem se tinha pronunciado de forma dura contra Palocci, seu camarada de partido, mudou de tom e de opinião, considerando que o ministro dera ao país esclarecimentos cabais e suficientes. Um tom que mais parecia de alguém que fora admoestado para não levantar poeira.
Mas outros elementos do PT, com menos responsabilidades no aparelho, querem mais investigações e esclarecimentos mais objectivos. Alegam que Palocci desviou para o tema economia as perguntas do tema corrupção e acusações, o que tem muito de verdade.
É este, também o juízo da generalidade da oposição.
Independentemente daquilo que vai ser apurado, e é fundamental para a democracia que seja apurado tudo, doa a quem doer, o ministro Palocci teve o mérito, maioritariamente reconhecido, de dar a cara, de se sujeitar à imprensa e à opinião pública, e de tentar exportar uma imagem limpa de governação.
Afinal de contas, esse papel já há muito deveria ter sido assumido por quem tem esse dever perante o povo. Não o fazendo, o presidente Lula da Silva dá voz aos que o acusam de comprometimento com os actuais escândalos, que já vêm de longe. Escondendo-se em comícios e inaugurações sem qualquer impacto nacional, o presidente alimenta as dúvidas que crescem diariamente sobre a honestidade do Executivo e, até, da sua pessoa.
Aguardemos, com a serenidade que ainda resta, o que há de verdade em mais este vagão do extenso combóio de denúncias e contraditas que circula num redemoinho. Fica, porém, algum desassossego por nos lembrarmos de que as acusações que têm chegado aos nossos ouvidos já cansados, apesar de contestadas, vêm sendo sistematicamente reconhecidas.



sexta-feira, agosto 19, 2005

Impugnação de mandato



O termo inglês impeachment, no seu significado de impugnação de mandato, começou a ser utilizado sem reservas no discurso político do Brasil, em relação ao presidente da república, Luís Inácio Lula da Silva.
Para que tenha expressão prática, o impeachment deverá obedecer a três condições em simultâneo.
Primeiro, é necessário que haja um facto, ou factos que, comprovadamente, constituam, da parte do presidente, delitos, sejam eles de responsabilidade, sejam de ordem cível, sejam, ainda, do foro criminal. Depois, o pedido de impugnação terá de ser aceite por dois terços, pelo menos, dos parlamentares da Câmara dos Deputados. Finalmente, a impugnação deverá ter o apoio directo da população, demonstrado, por exemplo, em manifestações de rua.
Em Maio deste ano surgiram as primeiras denúncias concretas e públicas sobre um esquema de arrecadação de dinheiros recebidos de empresários, em troca de favores em licitações concedidos na empresa estatal Correios e Telégrafos do Brasil.
Pouco depois, Polícia Federal, Ministério Público, comissões parlamentares especialmente criadas para esse efeito e outros correlacionados, e órgãos de comunicação social iniciaram um complexo e moroso processo de pesquisa.
Aquilo que já foi tornado conhecido, fruto dessas investigações, levou muitos políticos a exprimir o parecer de que há factos comprometedores, pelo menos, para o presidente da república. Não é aceite sem um sorriso a conjectura de que nada saberia acerca do gigantesco esquema de corrupção que há largos anos vem fervilhando no país, levado a cabo pelo partido que fundou, de que foi presidente e de que é presidente de honra, onde tem amigos íntimos que colocou em posições-chave no governo e noutros lugares de destaque no aparelho do Estado.
A auditoria, recentemente solicitada, às contas da sua campanha de 2002 poderá, também, remetê-lo para uma situação melindrosa, enquanto responsável pela campanha, se for provado que houve financiamento com verbas do exterior.
Um outro ponto quente prende-se com uma dívida contraída pelo presidente Lula junto do seu partido, de 29.436,26 reais. Depois de várias diligências, soube-se, finalmente, que quem pagou as parcelas do empréstimo foi Paulo Okamotto, ex-tesoureiro da campanha de Lula da Silva em 1989.
Actual presidente do SEBRAI (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas, dotação anual de 900 milhões), nomeado por Lula, diz que pagou a dívida do seu próprio bolso para não incomodar o presidente com ninharias.
Porquê se escondeu isto da opinião pública, e só quando o banco do Brasil foi instado a mostrar as contas do PT apareceu o pagador? Porquê este gesto, quase caritativo, de um cidadão que paga do seu bolso as dívidas do presidente?
Para além de parecer uma história mal remendada, com contornos pouco claros e pouco credíveis, recorde-se que um partido político não é um banco, nem qualquer outro tipo de instituição financeira. Logo, não está autorizado a fazer empréstimos, seja a quem for, filiado ou não, mesmo tratando-se de Lula da Silva. Em condições normais, isto é, sem a existência de recursos não contabilizados, provenientes de fontes suspeitas, as verbas dos partidos são-lhes atribuídas pelo Estado para constituição daquilo a que se chama o fundo partidário. Ora, se foi desse fundo partidário que saiu o empréstimo a Lula da Silva - e donde poderia ser? - o facto incorre em ilegalidade.
Os depoimentos dos inquiridos ao longo das investigações, ainda que, na generalidade, tentem poupar o presidente, vão permitindo juntar as peças do quebra-cabeças que, cada vez mais, tem o retrato de Lula da Silva. Provavelmente, muito em breve ele não escapará da acusação de culpa de responsabilidade, a menos que alguma bem engendrada "operação abafa", ou acontecimentos inesperados, o coloquem definitivamente acima de qualquer suspeita.
Parece, pois, que a primeira condição poderia vir a cumprir-se a breve trecho.
Quanto à segunda, a aceitação do pedido de impeachment pelos deputados, a opinião dos parlamentares está dividida, não tanto por razões jurídicas, mas por razões de conjuntura política.
No panorama actual, não parece haver alternativas imediatas e vantajosas à Administração em funções.
Lula foi eleito por 53 milhões de cidadãos. O seu partido, o Partido dos Trabalhadores (PT) tem 800 mil filiados.
Para além de se encontrar neste momento numa situação caótica, enfrentando, exteriormente, o descrédito popular e a vergonha pública, e, internamente, uma crise de desmembramento, e, ao mesmo tempo, de choque de bandos residuais em luta pelo poder, o PT não está em condições de polarizar massas, seja vendendo doutrinas, seja fornecendo líderes.
O vice-presidente, José Alencar, para além de comprometido com negociatas de compra de partidos para apoio à campanha em que concorreu na lista de Lula, em 2002, apesar de nada ter a ver com o PT, não é figura do agrado da maioria da oposição, face às suas teses quanto à política económica.
O presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti, não está à altura, embora deselegantemente já tenha dito que sim, nem para assegurar um eventual período de transição, por mais curto que seja.
Foi ele quem propôs na Câmara, pouco depois da sua eleição, um aumento de mais de 80% para os deputados, alegando em tom galhofeiro que o povo não se importaria – o povo que foi contemplado com um aumento de salário mínimo da ordem dos 15%. O despropósito foi tal, que os próprios deputados rejeitaram a proposta.
Sem espírito nem estofo de estadista, não é de considerar.
Quanto aos partidos da base aliada, a maioria está comprometida com os escândalos de corrupção, outros se transferiram para o lado de lá da trincheira.
Os partidos declaradamente de direita, para além de não possuírem espaço de afirmação no momento que se vive, estão, na generalidade, também eles mergulhados na lama que cobre o país.
Há nos pequenos partidos de esquerda alguns líderes que têm vindo a conquistar a opinião pública. Mas, sozinhos, não têm expressão eleitoral, e não parece haver disposição para se coligarem numa frente unida de esquerda.
Resta o partido da alternância, Partido Social Democrata Brasileiro (PSDB), donde saiu o presidente anterior, Fernando Henrique Cardoso. Pela sua dimensão e implantação, poderia ser uma alternativa a considerar. Acontece, porém, que o candidato que possui é um perdedor da campanha de 2002, frente a Lula. José Serra já foi ministro. Actualmente é o presidente da autarquia de São Paulo, que conquistou ao PT no ano passado. Pouco tempo decorreu para mostrar serviço. Apesar de estar a crescer em intenção de voto num despique com Lula, as projecções destinam-se a uma possível candidatura em 2006, e não a uma tomada de posse imediata, ou quase, como seria a eventualidade da impugnação do mandato de Lula.
Este quadro geral retrai os deputados quanto à aceitação de um impeachment já.
E a vontade popular, a terceira condição, decisiva alavanca neste processo?
As recentes manifestações têm evitado, embora ancoradas em razões diferentes, falar de impeachment. Por motivos óbvios, as que apoiaram o governo, ainda que, contraditoriamente, tenham condenado a corrupção e a política económica. As que condenam o governo, por motivos tácticos.
Estas manifestações, planeadas, montadas e orquestradas por organizações de variada índole, de associações de moradores a sindicatos, de grupos estudantis a agricultores sem terra, nada têm de espontaneidade popular. O povo não está em condições de vir para a rua pedir a impugnação do mandato presidencial.
Atónito perante os acontecimentos que se atropelam desde Maio último, o povo está confuso, desiludido e desconfiado. A profusão de denúncias e confidências, não poucas vezes contraditórias, que todos os dias, a toda a hora, lhe martelam a cabeça, seguida imediatamente de igual número de contestações e polémicas, levaram a que não acredite em ninguém, em especial porque, com frequência, as denúncias negadas acabam por se confirmar.
Desmotivado por tudo isto, o povo não desce à rua, salvo em algumas, poucas, acções locais e diminutas, desarticuladas, que mais devem ao folclore do que à autêntica contestação política.
Os políticos são avaliados pela mesma bitola. Este não é melhor do que aquele. São iguais. Tanto faz este como aquele. Todos iguais.
Assim, não há possibilidade de mobilização.
Este estado de espírito é perigoso. Constitui uma porta aberta para o oportunismo político, o despotismo, a tirania, tal como a que já fermentava, de forma encapsulada entre os actuais detentores do poder, e de forma aberta dentro de partidos, com o PT à cabeça.
O impeachment, nas circunstâncias em que o país se encontra, não parece ser a solução mais eficaz. Antes de o promover, será necessário criar novas condições de governabilidade que restaurem uma confiança sadia no poder público, tanto dentro como fora do país. Será preciso, acima de tudo, moralizar o Estado. Estarão dispostos a isso os senhores do poder, nas suas várias instâncias?
Se tudo ficar na mesma, apesar das conclusões tenebrosas a que os vários níveis de investigação chegam no quotidiano, com impeachment ou sem ele, o horizonte não será muito luminoso neste país de sol.



quarta-feira, agosto 17, 2005

Mar de lama agitado



Mar de lama é a imagem que alguma comunicação social, em particular a menos comprometida com o sistema, insiste em utilizar para se referir ao rol de escândalos políticos que continua a desdobrar-se perante os olhos do cidadão brasileiro.
Na sequência da descoberta de um esquema de suborno na empresa estatal Correios e Telégrafos do Brasil, onde um funcionário responsável pelo sector de compras e licitações foi filmado por câmara escondida a receber dinheiro de empresários para atribuição de benefícios (ver crónicas anteriores), está a chegar-se à desmontagem de um esquema de associação criminosa de nível nacional.
O assalto aos cofres públicos e privados realizado por uma quadrilha de políticos, em particular do partido do governo (Partido dos Trabalhadores – PT) e do aparelho do Estado visava, com apoio de empresários corruptos, assegurar por vários expedientes, um deles o suborno, a captura do próprio Estado para uma perpetuação no poder. Um processo que foi apelidado de ditadura branca.
A arca de Pandora donde saem revelações todos os dias parece ser um poço sem fundo.
Segue um resumo das notícias recentes mais relevantes.
Segunda-feira, 15 de Agosto. A TV Record, um dos canais cuja audiência é das melhor cotadas, revela que o banco do Brasil, banco estatal que não é o banco emissor, classifica o PT como "devedor de risco". Em linguagem bancária, significa que a instituição considera muito difícil reaver os montantes emprestados, qualquer coisa como, no mínimo, 50 milhões de reais (1 real equivale, aproximadamente, a 0,33 euros). Para evitar situações semelhantes, o banco fechou a concessão de crédito a partidos políticos, entidades desportivas, e igrejas e associações religiosas.
A Justiça determinou a investigação dos contratos de mais de 2 milhões de reais que a empresa de informática Nova Data celebrou com os Correios. O proprietário da empresa é amigo pessoal do presidente Lula da Silva.
Segundo revelações de Duda Mendonça, o publicitário que trabalha há anos para o PT e foi o responsável pela campanha para as presidenciais de Lula da Silva, os honorários devidos foram pagos directamente em contas que o publicitário teve de abrir no estrangeiro. Ao que tudo indica, algumas destas contas, sediadas em paraísos fiscais, datam de 1997. A exigência foi de Marcos Valério, o empresário, também de publicidade, em cujas empresas era feita a lavagem do dinheiro que circula em todo este processo de corrupção. As verbas depositadas nas contas de Duda Mendonça saíram de contas de empresas de Marcos Valério. Perante isto, deputados da oposição pediram a reabertura e análise dos justificativos de campanha do presidente Luís Inácio Lula da Silva, ou seja, uma auditoria. O objectivo é cruzar informação para averiguar de uma eventual entrada de dinheiros do exterior na campanha do presidente. Se isto for confirmado, Lula estará numa posição crítica, segundo a Lei Eleitoral, já que tal situação se configura ilegal, e é ele quem responde pela campanha.
Em entrevista no Programa do Jô, uma rubrica transmitida na madrugada da TV Globo, de segunda a sexta, do jornalista/entertainer Jô Soares, a deputada federal pelo Rio de Janeiro Denise Frossard deixou claro que os dinheiros envolvidos nos escândalos que têm vindo a público poderão ser provenientes de actividades criminosas, tanto no Brasil, como no exterior. E pergunta: "Quem comprou o Brasil?". A deputada, do Partido Popular Socialista (PPS), figura muito ouvida e estimada pela sua verticalidade e pela sua actuação contra o crime organizado no Rio, enquanto juíza criminal, avança que tem a convicção de que o presidente Lula saberia de tudo o que estava a passar-se. A dúvida que resta é se ele estaria ou não implicado no comando da operação.
Terça-feira, 16 de Agosto. Pelos microfones da Central Brasileira de Notícias (CBN) ouvimos o depoimento de Emerson Palmieri, ex-tesoureiro do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), partido por onde tudo começou, tanto nas acusações feitas como nas sofridas. Palmieri contrariou uma declaração anterior de Marcos Valério, segundo a qual ele, Palmieri, teria acompanhado o empresário a Portugal em viagem de passeio, oferecida por este último, seu amigo, para se restaurar de cansaço físico e psicológico. Sem margem para dúvidas, o tesoureiro deixou claro que não tem nenhum vínculo de amizade com Valério, e afirmou que foi a Portugal com o empresário, onde chegou às 11 horas do dia 25 de Janeiro deste ano, não para passear, mas para estabelecer contactos com a Portugal Telecom, na qualidade de representante do PTB. Valério apresentou-se como delegado do PT. O objectivo seria conseguir dinheiro da companhia portuguesa para equilibrar as contas daqueles dois partidos. Se o negócio tivesse dado certo, diz Palmieri, o dinheiro entraria através de uma empresa de telecomunicações brasileira. Juntemos isto a tudo o que foi escrito na crónica anterior sobre a Portugal Telecom, e o facto de os principais depositantes do dinheiro deste esquema, até agora identificados, serem empresas de telecomunicações. Dá para que a comissão de inquérito que investiga o caso possa colocar algumas questões interessantes – se nisso estiver interessada.
Em Brasília, associações de estudantes, associações de moradores, centrais sindicais, Movimento dos Sem Terra (MST) e elementos ligados à Pastoral da Terra organizaram uma manifestação contra a corrupção, contra a política económica e a favor do governo. Não se pode condenar os actos de um agente e, ao mesmo tempo, apoiá-lo. Talvez esta contradição tenha contribuído para o fracasso do evento. Onde se esperavam 20 mil manifestantes compareceram 8 mil, segundo a TV Record. Não obstante, o presidente Lula fez questão de receber pessoalmente os organizadores.
À CBN (Central Brasileira de Notícias) o vice-presidente José Alencar, do Partido Liberal (PL), confirmou que ele e Lula da Silva haviam estado, em 2002, juntamente com José Dirceu, o ex-ministro chefe da Casa Civil de Lula e homem forte do PT, recentemente afastado na sequência do apuramento destes escândalos, Delúbio Soares, ex-tesoureiro do mesmo partido, também e pelos mesmos motivos afastado, e o empresário Marcos Valério, num apartamento onde foi negociada a passagem de, pelo menos, 10 milhões de reais do PT para o PL, em troca do apoio nas eleições que culminou com a presidência de Lula. Luís Inácio e Alencar, numa sala à parte, não teriam participado nas negociações.
O presidente Lula da Silva, "embora sem qualquer relação com pressões originadas na crise política", segundo alguém disse, distribuiu 1 bilhão de reais por 13 ministérios, com a maior fatia para a educação e a saúde, e pela entidade responsável pela infraestrutura dos aeroportos.
Quarta-feira, 17 de Agosto. Uma manifestação promovida em Brasília por partidos de esquerda, contra a corrupção e contra o governo, terá congregado de 12 mil a 15 mil pessoas, segundo dados da polícia militar. Lula da Silva, logo que soube da data desta realização, marcou para a Bahia a sua presença num acto de terceira linha.
A Associação dos Magistrados Brasileiros tornou pública uma posição em que exige ética nos actos políticos, e a punição de todos os culpados no estendal de escândalos que assolam o país.
O senador Eduardo Suplicy, do partido do governo (PT) em São Paulo, escreveu ao presidente Lula da Silva pedindo que ele se desloque ao Congresso para explicações. Suplicy foi um dos responsáveis pelo requerimento que criou a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito dos Correios, cujas investigações estão a pôr em causa toda a credibilidade do governo Lula.
Waldomiro Dinis, o ex-assessor do ex-ministro José Dirceu, segunda figura da Casa Civil do presidente Lula quando Dirceu era o chefe, foi hoje indiciado por corrupção activa. Waldomiro exigia comissões (propinas, como aqui se diz) a um empresário de jogo, Carlos Augusto Ramos, conhecido por Carlinhos Cachoeira. O dinheiro, segundo acusação, destinava-se a financiar campanhas eleitorais de membros do PT e do PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), da base aliada, em 2002. Do mesmo modo, Carlinhos Cachoeira foi indiciado, mas por corrupção passiva. O seu advogado declarou contestar o motivo do indiciamento, uma vez que, defende, Cachoeira terá sido alvo de extorsão. Waldomiro foi presidente das Loterias do Estado do Rio de Janeiro (Loterj), e, para além destas negociatas em benefício de políticos em 2002, notícia que em Fevereiro de 2004 colocou o Palácio do Planalto (sede do Governo) em posição delicada, está envolvido em esquemas duvidosos relacionados com o jogo. Ligado a isto, como tentáculos do mesmo polvo, o Ministério Público vai investigar 155 políticos do Rio de Janeiro, 113 deputados e 42 vereadores, cujo património será avaliado. Segundo reportagens publicadas pelo jornal O Globo a partir de 20 de Junho deste ano, 27 deputados do Rio aumentaram os seus bens em mais de 100%, entre 1996 e 2001, o mesmo acontecendo a 14 vereadores, entre 1998 e 2003.
Está a ser investigado um contrato sem licitação e suspeito de sobrefacturação, celebrado entre a estatal ECT (Empresa de Correios e Telégrafos do Brasil) e uma empresa de Sílvio Pereira, o ex-secretário-geral do PT, afastado na decorrência dos actuais escândalos político-financeiros.
Rogério Burati, secretário municipal na cidade de Ribeirão Preto, estado de São Paulo, quando o actual ministro da Fazenda, António Palocci, era o presidente da autarquia, foi hoje preso, acusado de formação de quadrilha, lavagem de dinheiro e destruição de provas. Ilegalidades cometidas em licitações de obras públicas, verificadas em 1993, levaram Palocci a demiti-lo em 1994. Segundo a TV Record, alguns telefonemas recentes entre Burati e Palocci, que serão investigados por quebra de sigilo telefónico, estão a criar um mal-estar adicional no já tão adoentado Palácio do Planalto. A economia é o elo que tem ajudado a manter alguma integridade residual na fragilizada cadeia de governo. Se também ela for contaminada pela epidemia que vem destroçando o país, então a derrocada definitiva do projecto Lula/PT, para o bem e para o mal, poderá ser irremediável e irreversível.
Fecho esta crónica com uma recordação da campanha de 2002 para as presidenciais. Dizia o então candidato Luís Inácio Lula da Silva: "No meu palanque, corrupto não sobe. No meu governo, corrupto não entra".



sábado, agosto 13, 2005

Mais denúncias seguidas de repúdio e... confirmação



A furiosa corrupção política que vem sendo desmontada desde Maio passado (v. crónicas anteriores) na sociedade brasileira tem arrastado consigo segmentos do mundo empresarial público e privado, e ganhou contornos internacionais.
Apesar das sucessivas "operações abafa" que continuam a ser ensaiadas, o homem da rua não está disposto a deixar-se enganar, e os parlamentares da comissão a quem foi entregue o caso há cerca de três meses, Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Correios, pretendem investigar tudo até às últimas consequências.
Agora já não há possibilidade de esconder seja o que for. As comadres zangaram-se, e as verdades surgem num tal redemoinho que a opinião pública começa a ficar intoxicada. Poderia correr-se o risco de vir a desinteressar-se, no médio prazo, como grupo de pressão sobre os órgãos encarregados de apurar os factos e punir os culpados, se não fosse a catadupa de novos acontecimentos e declarações que diariamente surgem veiculados pela comunicação social.
No meio da barafunda, é constante a tentativa de fuga pela porta das traseiras, um salve-se quem puder desenfreado, à semelhança dos ratos que procuram abandonar o navio que se afunda. Só que os ratos, mesmo os mais ágeis e habilidosos, não estão a conseguir fugir a tempo e são arrastados com o barco.
Ninguém conhece ninguém, ninguém é solidário com ninguém, amigos renegam amigos, companheiros de armas renegam companheiros de armas, patrões renegam funcionários, mulheres renegam maridos, partidos renegam militantes.
Toda a gente acusa toda a gente. Vinganças cegas relampejam pelo ar. O Congresso (órgão que reúne senadores e deputados) está a abarrotar de pedidos de suspensão de mandatos que os deputados disparam uns contra os outros numa guerrilha imparável.José Dirceu, o ex-ministro chefe da Casa Civil do presidente Lula, aquele que foi o homem forte do governo, continua no centro da polémica. Apontado como mentor do mensalão, a mesada que era paga a deputados da oposição para que votassem favoravelmente as propostas de lei dos governistas (e que levou a que nos últimos dois anos 136 deputados tivessem mudado 215 vezes de partido), afastado do governo na sequência destes escândalos e com outros às costas, como o do caso de um seu assessor que extorquia dinheiro de um empresário de jogos electrónicos, é acusado na revista brasileira Veja, a que desencadeou a vaga de fundo, de ter sacado, também ele, 50 mil reais (1 real vale, aproximadamente, 0,33 euros) de contas de empresas de Marcos Valério. A isto responde que é uma "armação sórdida". Mas, a talhe de foice, é, também, acusado de ter impedido, em 2002, investigações que comprovariam as extorsões levadas a cabo pelo seu ex-assessor. E é acusado, ainda, de ser o receptador de dinheiro espoliado à rede de transportes colectivos de Santo André, cidade do interior de São Paulo. Com este caso parece prender-se o assassinato do então presidente da autarquia, Celso Daniel, do PT, cujo irmão tem imputado responsabilidades a Dirceu. Já morreram seis pessoas relacionadas com o acontecimento.
Marcos Valério, o empresário do ramo da publicidade a contas com a Justiça, entre outras coisas, por fuga a impostos e às contribuições para a segurança social, e em cujas empresas eram lavados os fundos privados e públicos que alimentavam este grandioso esquema de corrupção, pretende salvar a pele por todos os meios e, como no abraço do afogado, vai levando de arrastão para o fundo do lodaçal figuras que se esforçam, já sem êxito, por aparentar inocência.
A última divulgação de Marcos Valério, que Dirceu não comentou, foi a de que ajudara a ex-mulher deste, Ângela Saragoza, a arranjar emprego no banco BMG, e a conseguir um empréstimo avultado no Banco Rural. Ambas as instituições estão comprometidas até ao pescoço nos escândalos em investigação. Coincidências.
Outra coincidência interessante, também revelada por Valério: o empresário pagava contas pessoais do Procurador Geral da Fazenda, entidade que julga as actividades financeiras, como as do Banco Rural e do BMG.Quanto a este último banco, ainda não foi possível justificar a saída de vários milhões para contas de empresas de Marcos Valério, no ano de 2004, ano de eleições autárquicas.
Igualmente por explicar, três reuniões entre altos responsáveis daqueles bancos e o então ministro José Dirceu, conforme divulgado por Marcos Valério.
Simone Vasconcelos, directora financeira da SMP&B, principal empresa de Marcos Valério, foi sacadora no Banco Rural de mais de 6 milhões de reais, apresentando três versões diferentes quanto ao destino do dinheiro. Da primeira vez negou; confrontada com as provas, admitiu, mas disse desconhecer os beneficiários.
A irritação da CPI dos Correios perante a arrogância das suas respostas e pelas mentiras descaradas com que pensava poder tapar o sol com a peneira, alegando, por exemplo, desconhecer, como directora financeira, o montante da facturação da empresa, levaram um dos inquiridores a lembrar-lhe que estava sob compromisso de dizer a verdade e que, a continuar assim, poderia sair dali sob prisão. Acabou por revelar uma lista de nomes de favorecidos, não sem manifesta revolta.
A audiência de Delúbio Soares na comissão de ética do partido do presidente Lula, Partido dos Trabalhadores (PT), onde foi tesoureiro até ao rebentar destas bombas, teve de ser adiada por desconfiança quanto ao coordenador da comissão, Danilo de Camargo. Na véspera, ele teria estado numa reunião clandestina com o demitido presidente do PT, José Genoíno, amigo de Delúbio e uma das figuras do escândalo. Passado pouco tempo, Danilo foi afastado da Comissão de Ética.
Alguns dias depois, já com novo coordenador, a comissão não arranjou coragem maioritária para afastar o ex-tesoureiro, conforme pretendia a ala mais à esquerda do partido, e foi o próprio Delúbio Soares que, com pompa e circunstância, se auto-suspendeu por 90 dias. A comissão, para salvar a honra do convento, estendeu a suspensão por tempo indeterminado.
Os acontecimentos atropelam-se.
O chefe máximo da Casa da Moeda, denunciado por Marcos Valério de ter sacado de contas suas no banco Rural 2,6 milhões de reais, pede a demissão que é imediatamente aceite.
Vem ao conhecimento geral que o antigo presidente da Câmara dos Deputados, João Paulo Cunha, terá, igualmente, recebido fundos lavados de fresco, 50 mil, recolhidos à boca do cofre por sua mulher. Como uma barata tonta, ora diz que renuncia, ora que não renuncia do cargo de parlamentar.
Quem renunciou, realmente, foi Valdemar da Costa Neto, ex-deputado federal por São Paulo e ex-presidente do Partido Liberal (PL). De um dos principais aliados do governo, o seu partido passou a um dos primeiros adversários, agora que foi indiciado de receber dinheiros sem prestação de contas públicas, pois se tratava de dinheiro de suborno. Acusa o presidente Lula da Silva e o vice-presidente José Alencar, do PL, de saberem da transferência de 10 milhões para este partido, em troca de apoio político.
Há algum tempo, Costa Neto insurgira-se contra o recebimento de verbas por parte de outros parlamentares. Chegou a vez de ser desmascarado.
Mas não se julgue que a sua renúncia representa um acto de coragem ou de penitência. Bem pelo contrário. Costa Neto renunciou hipocritamente porque, segundo a lei eleitoral brasileira, assim evita a cassação (impedimento de exercício) de direitos políticos por oito anos, face ao crime cometido. Portanto, nas eleições que se avizinham poderá recandidatar-se, confiando na curta memória do povo.
Foi a pensar em casos semelhantes que o Congresso começou a estudar a hipótese de retirar os direitos políticos por oito anos aos que renunciarem para fugir à Lei. A iniciativa partiu do deputado Tarso Genro, ex-ministro da Educação, actual presidente do PT, cargo que ocupa a pedido de Lula da Silva. A medida em análise já fez retroceder muitos deputados que se preparavam para renunciar. Tudo gente séria, da mais pura linhagem da honradez e da honestidade.
Em paralelo, o Congresso pensa adoptar outros procedimentos numa mini-reforma política, como sejam a votação em listas e não em personalidades (listas fechadas), a proibição de coligações, e o financiamento de campanhas apenas com dinheiros públicos, severamente fiscalizados.
Enquanto vai fazendo revelações, o empresário Marcos Val[erio pede ao Procurador Geral da República, através dos seus advogados, a redução da pena e o defeso de prisão preventiva, em troca de colaboração com as autoridades. Recusado. Qual pena, se não há nenhum julgamento? Réu confesso, diz-se cada vez mais apavorado, em especial quando se encontra sozinho. À cautela, os guarda-costas que sempre o acompanham trazem a cabeça completamente rapada, como ele. Escolher dentre três alvos é mais lento do que apontar a um. Esta é a lógica.
Para além das referidas incriminações e das buscas que estão a ser feitas nas suas contas pessoais, de sua mulher e de suas empresas, o empresário tem a Justiça no encalço de 1,1 bilhões que terão passado para uma empresa no paraíso fiscal das Ilhas Caimão.
Quanto mais perseguições lhe movem, mais revelações traz a público. Segundo ele, as suas empresas terão repassado cerca de 16 milhões de reais para as empresas de Duda Mendonça, publicitário que trabalha para o PT desde 2001. Ao FBI foi pedida colaboração para investigar as contas de Duda Mendonça no exterior. Já anteriormente se equacionara o pedido de ajuda à Interpol para averiguações quanto a uma empresa com sede no Uruguai, cuja delegação no Brasil escoava clandestinamente divisas para fora do país, divisas de Marcos Valério.
O Partido Comunista do Brasil (PC do B), que há pouco tempo acusava os partidos oposicionistas de conluio para o derrube do governo, também ele deixa o seu aliado nu na praça pública, e vem exigir na mesma praça movimentações de rua contra a corrupção. Será o despeito de quem, ao que parece, não foi beneficiado?
No início de Agosto teve lugar na Comissão de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados o tão esperado frente a frente José Dirceu – Roberto Jefferson. Ex-presidente do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), o deputado Jefferson tem sido, também ele, fonte inesgotável de denúncias em todo este processo de corrupção.
Quando o funcionário dos Correios Maurício Marinho, responsável pelo sector de compras e licitações da empresa estatal, foi filmado recebendo 3 mil reais de comissões (propinas, assim se chamam no Brasil) de empresários a quem seriam concedidos favores, acusou de imediato Roberto Jefferson de ser um dos responsáveis por uma esquema de corrupção que grassava na empresa. A sua responsabilidade teria começado nas nomeações para cargos de confiança naquela empresa, a que o seu partido tivera direito.
A partir daí, o deputado, a contas com a Justiça por envolvimento em várias ilegalidades, segundo é acusado publicamente e a que se não digna responder, começou a cortar a direito num solo de trombone que não pára e é capaz de ser ouvido do outro lado do planeta.
No frente a frente com José Dirceu, Roberto Jefferson figurava como acusado, e aquele como testemunha de acusação. Mas as posições inverteram-se logo no início. Dirceu, após responder a 32 quesitos colocados pelo relator da comissão, tomou a apalavra, e, num discurso que durou mais de duas horas, assumiu o papel de vítima, ofendido, acusado e pré-julgado. Ele que estava ali como testemunha de acusação tornou-se aos olhos de todos um réu acossado, muitas vezes a meter os pés pelas mãos e a cair em contradições constantes.
Declarando que não renunciaria, porque isso seria uma confissão de culpa, e que não aceitaria ser banido de direitos políticos, este homem ambicioso, de perto de 50 anos, escorregou com frequência ao expor as ideias, mostrando quem realmente é. Após um elogio despropositado à actuação e à pessoa do Presidente Luís Inácio Lula da Silva, acabou por dizer que o seu projecto político era governar o Brasil com o presidente Lula, ou, traduzido o lapso, governar o Brasil através do presidente Lula. Como este não é facilmente domável, ele próprio com tendências ditatoriais, Dirceu teria de usar métodos subterrâneos. Foi o que começou a fazer. Resta apurar se alguns destes métodos não seriam do conhecimento de Lula da Silva, consentidos por conveniência própria.
Mais à frente, declarou que o seu afastamento do governo resultara de uma decisão conjunta com o presidente. Quando emendou a mão, atribuindo a decisão em exclusividade a Lula, como chefe do governo, o mal já estava feito, o dito já fora dito.
Jefferson não o poupou. Atacou o adversário por quem nutre um ódio demencial, conforme ele mesmo disse por outras palavras, olhos nos olhos: "o deputado desperta em mim as reacções mais primárias, e eu tenho medo disso".
José Dirceu, com tudo para perder, negou veementemente a totalidade das acusações. Nalguns casos acabou por, implicitamente, aceitar algumas delas, afirmando, por exemplo, que não podia responder por actos da direcção do PT. Reconhecia, assim, que os actos tinham sido praticados.
Ser acusado por alguém a contas com a Justiça será incómodo. Que as acusações vão sendo comprovadas é suprema ironia do destino.
Roberto Jefferson, sem nada para perder, reiterou todas as acusações e acrescentou outras. Disse, por exemplo, que em Janeiro e em Março de 2004 revelara ao presidente Lula tudo o que estava a passar-se no respeitante ao esquema de suborno de deputados. A acusação não mereceu qualquer desmentido por parte do Palácio do Planalto, a sede do governo brasileiro.
Prosseguindo a lavagem da roupa suja, revelou que Dirceu tivera negociações com a Portugal Telecom, o gigante português de telecomunicações, tentando obter fundos para o saneamento financeiro do PT e do PTB. Isto em Janeiro de 2005. Da embaixada, composta por quatro membros, faria parte o empresário Marcos Valério. A revelação teve o mesmo estrondo no Brasil e em Portugal, tanto mais que Valério e a própria Portugal Telecom admitiram a visita àquela empresa, embora defendendo que os objectivos foram meramente comerciais e não envolveram hipotéticos financiamentos.
O semanário "Expresso", publicado em Lisboa, noticiara na edição de 16 de Julho passado que o então ministro português das Obras Públicas, Transportes e comunicações, António Mexia, em fins de Outubro de 2004 recebera Marcos Valério como "consultor do presidente do Brasil". A entrevista teria sido solicitada pelo presidente da Portugal Telecom, Miguel Horta e Costa.
Perante os acontecimentos recentes, o mal-estar instalou-se dos dois lados do Atlântico, e começaram a surgir os dito-por-não-dito. Mas há demasiados acasos que dão que pensar.
António Mexia, entre 1990 e 1998, foi administrador do Banco Espírito Santo (BES), o banco português que ocupa a terceira posição no quadro dos bancos europeus. Miguel Horta e Costa foi também administrador desse banco, entre 1990 e 1992. O BES tem participação na Portugal Telecom. Ainda em Outubro de 2004, Marcos Valério foi recebido pelo presidente do BES, Ricardo Salgado. Este, por sua vez, esteve no Brasil em Janeiro de 2005, tendo conversado com José Dirceu. O promotor do encontro foi Marcos Valério que também se encontrava presente. Nestes períodos, o ex-tesoureiro do PT, Delúbio Soares, deslocou-se várias vezes a Portugal.
Recentemente, a CPI dos Correios concluíra que cerca de dois terços das fontes de abastecimento financeiro das contas de Marcos Valério para alimentar o processo de corrupção, apuradas até à data, eram constituídos por empresas de telecomunicações brasileiras. Foram encontradas, semi-destruídas, provas disso em casa de um irmão do contabilista (contador, no Brasil) de Marcos Valério.
Nova corrida, nova viagem, como nos carrosséis de feirinha, novo dia, nova denúncia. Agora tocou ao próprio presidente, Luís Inácio Lula da Silva. Veio a lume que uma eventual dívida de 30 mil reais que contraíra junto do partido, ao que parece, estaria a ser paga em parcelas de 10 mil, via Internet, não se sabe por quem.
Ao mesmo tempo, Marcos Valério assegura que pagou as contas relativas à festa da tomada de posse do presidente, em 2003, e afirma, também, que das suas empresas saíram 15 milhões para a campanha eleitoral do presidente. E o presidente continua a afirmar que não sabia de nada, fosse legal ou ilegal.
Militantes do PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado), constituído em grande parte por dirigentes e activistas sindicais, tradicionalmente aliados do governo, pedem à CPI dos Correios e à Procuradoria Geral da República para que o presidente Lula seja investigado.
O partido da Frente Liberal (PFL) acusa Lula na Procuradoria Geral da República de gastar dinheiros públicos com campanhas eleitorais antecipadas, na sequência de discursos pouco comedidos do presidente.
Mais recentemente, a oposição começou a analisar as condições políticas de impeachment (demissão do presidente), depois de ter concluído pela existência de fundamento jurídico, embora haja opiniões divergentes quanto a esta questão. Embora as opiniões dos parlamentares se dividam em meio por meio, a popularidade de Lula da Silva decresce a olhos vistos.
A ingovernabilidade é um espectro cada vez mais próximo.
O cerco a Lula aperta-se de forma inexorável.
Sem saber o que há-de fazer, completamente à deriva, Lula da Silva ora se remete para um distanciamento comprometedor, costas viradas para o partido que fundou, o PT, ora explode em desbragados discursos populistas, como aquele em que declarou que "se houver reeleição, eles terão de me engolir outra vez". A situação do país desaconselha tamanhos rasgos de arrogância.
Num pronunciamento feito pela televisão no último dia 12, o presidente disse ter sido traído por práticas que não conhecia. Não mencionou nomes. Pediu desculpa ao país e incentivou o governo e o PT a fazerem o mesmo, como se ele próprio não fosse PT e governo.
O discurso não convenceu ninguém. As entrevistas de rua revelaram um povo desiludido e descrente, fazendo demasiadas perguntas, perguntas sobejamente incómodas para o gosto do governo.
A classe política reagiu mal. Se houve traição, quem traiu? O próprio presidente do PT referiu que as palavras do Chefe de Estado não chegam para debelar a crise.
Lula passou o dia de sábado 13 a jogar futebol no seu refúgio de férias. Na próxima segunda-feira reunirá o gabinete para discutir a crise.
Tudo muito lentamente e sem empenho, como quem está por completo inocente, ou como quem já se apercebeu de que tudo se encontra perdido.
É voz comum e aceite que Lula da Silva de inocente nada tem.
Talvez lhe reste a esperança expressa nas palavras do deputado Wilmar Lacerda, presidente do PT no Distrito Federal, que, com lógica de ferro, sentencia: "se há 30 anos isto se faz e nunca ninguém foi punido, então não é crime".