domingo, agosto 21, 2005

Uma brecha no pilar


Foi preso na passada quarta-feira o advogado brasileiro Rogério Tadeu Buratti, em São Paulo, acusado de formação de quadrilha, lavagem de dinheiro e destruição de provas.
Buratti foi assessor parlamentar do ex-ministro José Dirceu, envolvido nos escândalos político-financeiros que desabaram sobre o país, e desempenhou funções de secretário municipal na cidade de Ribeirão Preto, estado de São Paulo, no tempo em que o actual ministro da Fazenda do Brasil, António Palocci, membro do Partido dos Trabalhadores (PT), no poder, ocupava a presidência do município.
Envolvido numa suposta trama de ilegalidades cometidas em licitações de obras públicas durante 1993, acabou demitido por Palocci no ano seguinte. No entanto, os motivos da demissão, baseados em gravações, nunca chegaram a ser confirmados, nem pelas buscas efectuadas pela autarquia, nem pelas levadas a cabo pelo Ministério Público, segundo declarou o próprio Palocci em entrevista colectiva (conferência de imprensa) na manhã de hoje. Apesar disso, Buratti jamais foi readmitido.
Ingressou, então, numa grande empresa de colecta de lixo em Ribeirão Preto, a Leão Leão, e, paralelamente, foi sócio de Juscelino Dourado, de quem é padrinho de casamento. Dourado, que ocupa, actualmente, o cargo de chefe de gabinete do ministro António Palocci, vem referido na imprensa como tendo autorizado a compra de um aparelho de escutas telefónicas para o gabinete.
De acordo com o noticiário da TV Record no dia da detenção, o conhecimento de telefonemas recentes entre Buratti e Palocci teria criado algum mal-estar no Palácio do Planalto, sede de um governo francamente fragilizado pelos escândalos de corrupção que, desde Maio deste ano, têm caído como chuva por todo o Brasil, originado a divulgada imagem de mar de lama.
Rogério Buratti solicitou ao Ministério Público de São Paulo o benefício de delação premiada, em troca de depoimentos, ou seja, redução de pena para fazer revelações. Foi aceite, e sexta-feira, dia 19, encontrava-se na rua, depois de ter passado à Justiça uma série de denúncias que abanaram o país, mais uma vez, como um terramoto.
Basicamente, Buratti declarou que entre 1993 e 1996 Palocci, como presidente da autarquia, recebeu 50 mil reais por mês de propinas (comissões) da empresa de colecta de lixo Leão Leão, de Ribeirão Preto. O dinheiro teria sido repassado para o directório de São Paulo do Partido dos Trabalhadores, na pessoa do seu tesoureiro, Delúbio Soares, afastado de qualquer cargo no PT e suspenso por tempo indeterminado na sequência dos escândalos de corrupção que estilhaçam o país.
As verbas seriam utilizadas para financiamento de campanhas políticas.
O esquema estaria já infiltrado em mais três cidades do estado, e quase se instalou na capital, São Paulo, durante a presidência municipal de Marta Suplicy, também do PT, que em 2004 perdeu a autarquia para José Serra, do PSDB (Partido Social Democrata Brasileiro).
A talhe de foice, divulgou ainda que os jogos do bingo de São Paulo e do Rio de Janeiro canalizaram dinheiro, alguns milhões de reais, para a campanha do presidente da república, Luís Inácio Lula da Silva.
Face à acusação, António Palocci nega tudo, gesto a que os políticos brasileiros na berlinda já habituaram o povo, independentemente da veracidade, ou não, dos factos em apuramento na Justiça.
O ministro passa ao ataque, e, em nota de repúdio, acusa o Ministério Público (MP) de atropelar regras jurídicas, ao divulgar os depoimentos. O MP, por seu lado, contesta a acusação, alegando que as declarações de Buratti não estão sob a alçada do segredo de justiça, e que, pelo contrário, devem ser do conhecimento da imprensa e da sociedade, a bem da democracia.
A empresa visada, Leão Leão, confirma que contribuiu para a campanha de Palocci, mas dentro do quadro da Lei eleitoral (logo, Palocci ao negar tudo está a criar suspeição).
O presidente Lula tomou conhecimento das denúncias quando se encontrava em mais um pico da sua actual febre, inaugurações, desta vez em São Paulo. Não comentou, mas fez alguns arranjos no programa estabelecido. Um deles foi o cancelamento do discurso que iria ser proferido perante autarcas da região.
Enquanto isso, o Palácio do Planalto mobilizou-se para uma protecção blindada ao timoneiro da economia nacional, Palocci. Vários ministros estabeleceram contacto telefónico com líderes da oposição, recomendando cautela na apreciação dos factos, ou seja, que não fizessem mais ondas no já tão agitado mar de broncas que submerge o Brasil.
Contudo, o próprio PT, dividido, não cerrou fileiras em torno do seu militante Palocci. Há quem tente deitar alguma água na fervura, mas outros, os que procuram lavar as manchas do partido, como o secretário-geral, Ricardo Berzoini, exigem explicações imediatas. Berzoini afirma mesmo que o país tem maturidade suficiente para suportar uma eventual substituição do ministro da Fazenda. Tal posição, vinda donde vem, poderá ser, por si só, reveladora.
O vice-presidente, por seu lado, declara que, até prova em contrário, todo o cidadão é honesto, mas, significativamente, não se empenha numa defesa pessoal e peremptória do ministro.
Os mercados financeiros já foram afectados, com uma alta espectacular do dólar americano, a maior em 15 meses, e queda da Bolsa de Valores.Na penúltima crónica aqui escrita, Mar de lama agitado, em que o assunto Rogério Buratti já vinha a lume, fazendo eco de uma notícia, expressava a opinião de que a economia é o elo que tem ajudado a manter alguma integridade residual na debilitada cadeia do governo. Se também ela for atingida pela epidemia que vem destroçando o país, então a derrocada definitiva do projecto Lula/PT, para o bem e para o mal, poderá ser irremediável e irreversível.
O promotor que investiga o caso informou ontem, segundo a CBN (Central Brasileira de Notícias), que os documentos analisados e os factos inquiridos constituem prova concludente de que existiu um esquema de arrecadação ilegal de dinheiro em Ribeirão Preto e noutras cidades, segundo os moldes revelados por Rogério Buratti, embora não haja provas contra Palocci. O processo vai ser enviado ao Supremo Tribunal Federal.
Hoje, pouco depois do meio-dia, Palocci deu uma entrevista colectiva (conferência de imprensa), no auditório do Ministério da Fazenda, em Brasília.
Começou por saudar os órgãos de comunicação social e o trabalho desenvolvido, mostrou-se cordial, e quase se fantasiou de sedutor em relação à imprensa.
O ministro, que é médico de profissão e dirige o ministério da Fazenda desde Outubro de 2002, num discurso de 25 minutos, com a tranquilidade que caracteriza o seu perfil, fez o auto-elogio do trabalho realizado, declarou a economia de perfeita saúde e melhor que nos anos anteriores (quando o PT não era governo, claro), apesar de os especialistas explicarem que os progressos verificados se devem essencialmente, ao aumento das exportações, e não a reformas profundas da política económica, e enalteceu, por diversas vezes, a actuação do presidente Lula da Silva, defendendo que este de nada sabia sobre o esquema de corrupção implantado pelo PT.
Disse que antes do discurso falara com o presidente, pondo o seu lugar à disposição, temporária ou definitivamente, e do Palácio do Planalto trouxe um recado, por certo dirigido à oposição e à ala esquerda do PT: Lula da Silva não autorizaria o seu afastamento, uma clara alusão ao caso José Dirceu, ex-ministro chefe da Casa Civil, cuja cabeça fora pedida, e oferecida, na sequência dos subornos e das recolhas ilícitas de verbas partidárias, acontecimentos que estão a ser investigados desde Maio.
Projectando uma imagem de segurança, honestidade e transparência, o ministro negou de forma categórica todas as acusações de que está a ser objecto, tanto por Rogério Buratti, como por alguma imprensa. Rejeitou que tenha recebido, ou tenha autorizado que alguém recebesse, recursos de forma ilícita para actividade partidária.
Ao afirmar ser impossível a existência de um esquema desse tipo sem conhecimento de quem dirige o órgão, seja autarquia, ministério, ou outro, inadvertidamente colocou em cheque o presidente Lula da Silva, que, chefe máximo, sempre tem negado todo e qualquer conhecimento dos gigantescos esquemas de suborno e de arrecadações ilegais.
Confirmou que recebeu contributos da empresa Leão Leão, e de outras, mas tudo de forma legal e com registos que podem ser consultados.
Esclareceu que o contrato de colecta de lixo com a Leão Leão é anterior à sua tomada de posse como presidente da autarquia de Ribeirão Preto.
Rebateu alguns pontos de uma reportagem da revista Veja, a que levantou o véu de todo o processo de corrupção, com matérias publicadas em Maio, reportagem essa onde se tentava provar que Rogério Buratti tem hoje influência na agenda do ministério, conseguindo marcação de entrevistas.
Negou que ele ou o chefe de gabinete, Juscelino Dourado, tenham feito diligências para a compra de um gravador de escutas telefónicas.
Enfim, negou todas as denúncias feitas por Buratti, e voltou a acusar o Ministério Público de atropelo jurídico, por ter divulgado antes do tempo, em seu entender, as declarações do ex-secretário municipal. A sua indignação, embora serena, estava acrescida pelo facto de se ter colocado, segundo disse, à disposição do Procurador Geral de Justiça do Estado de São Paulo, Rodrigo César Rebello Pinho, para ajudar a esclarecer os factos.
Sem mostrar ressentimentos para com Buratti, admitindo, até, que as respectivas famílias tiveram, em tempos, relações de amizade e se visitavam, desculpabilizou-o, até certo ponto, dizendo que desconhece as razões por que ele procedeu assim. Justificou-o, em parte, aceitando que a situação de constrangimento em que Buratti se encontrava, preso, algemado, o possam ter levado a fazer denúncias "sem propósito".
Depois da exposição, submeteu-se, durante quase duas horas, às perguntas dos jornalistas que, de resto, o pouparam bastante.
Ninguém perguntou, por exemplo, o que Palocci teria a dizer sobre os recentes telefonemas entre ele e Rogério Buratti. Ninguém questionou o facto de, sendo ele o responsável máximo pelo ministério da Fazenda, e sendo este ministério responsável pelo controlo das operações financeiras do país, aparentemente nunca ninguém o ter informado das movimentações milionárias que se faziam dentro do país (e para fora do país). Muito estranho, para quem defende que é difícil esconder determinadas operações ao coordenador maior de um órgão público. Ou terão informado? Se sim, que medidas foram tomadas? Parece que nenhumas, atendendo ao estado a que as coisas chegaram.
Sem rejeitar perguntas, fez, no entanto, muitos jogos de cintura, respondendo a algumas delas com demagogia, contornando e iludindo outras, esquivando-se de outras ainda, e aproveitando a mais pequena oportunidade para desviar o tema corrupção, quase nada aflorado, crise ainda menos, e, em seu lugar, distribuir pequenas lições de economia.
A maioria das respostas destinou-se a tranquilizar o mercado. Aliás, não foi por acaso que o pronunciamento se realizou num domingo, dia em que os mercados financeiros se encontram encerrados.
As reacções ao discurso do Ministro da Fazenda foram tão imediatas quanto variadas.
O Procurador Geral de Justiça do Estado de São Paulo, César Pinho, pouco depois, em entrevista colectiva, reiterou a confiança nos seus promotores, com quem se solidarizou, repetiu que o caso em apreço não é segredo de Justiça, logo, não houve qualquer atropelo na divulgação do depoimento de Buratti, e que o processo vai ser enviado ao Supremo Tribunal Federal para apuramento do grau de veracidade das ocorrências narradas por Buratti.
César Maia, o prefeito do Rio de Janeiro (presidente da câmara, em Portugal), do Partido da Frente Liberal (PFL), talvez dos partidos da oposição o mais acirrado inimigo do governo, disse estar cada vez mais convencido do comprometimento de Palocci no processo revelado à Justiça por Buratti. E, na página que mantém na Internet, o autarca afirma que o ministro das finanças mentiu quando disse no seu discurso que fora do prefeito anterior o contrato de licitação para recolha de lixo em Ribeirão Preto. Conforme documento apresentado nessa página, verifica-se que Palocci fez, de facto, licitação no seu mandato, mais precisamente em 2002, para o aterro e para a colecta do lixo reciclável e da Saúde. Ganhou a firma Leão Leão num contrato de cerca de 42 milhões de reais. Esquecimento grave do ministro, para tamanha verba.
Ricardo Berzoini, o secretário-geral do PT, que ontem se tinha pronunciado de forma dura contra Palocci, seu camarada de partido, mudou de tom e de opinião, considerando que o ministro dera ao país esclarecimentos cabais e suficientes. Um tom que mais parecia de alguém que fora admoestado para não levantar poeira.
Mas outros elementos do PT, com menos responsabilidades no aparelho, querem mais investigações e esclarecimentos mais objectivos. Alegam que Palocci desviou para o tema economia as perguntas do tema corrupção e acusações, o que tem muito de verdade.
É este, também o juízo da generalidade da oposição.
Independentemente daquilo que vai ser apurado, e é fundamental para a democracia que seja apurado tudo, doa a quem doer, o ministro Palocci teve o mérito, maioritariamente reconhecido, de dar a cara, de se sujeitar à imprensa e à opinião pública, e de tentar exportar uma imagem limpa de governação.
Afinal de contas, esse papel já há muito deveria ter sido assumido por quem tem esse dever perante o povo. Não o fazendo, o presidente Lula da Silva dá voz aos que o acusam de comprometimento com os actuais escândalos, que já vêm de longe. Escondendo-se em comícios e inaugurações sem qualquer impacto nacional, o presidente alimenta as dúvidas que crescem diariamente sobre a honestidade do Executivo e, até, da sua pessoa.
Aguardemos, com a serenidade que ainda resta, o que há de verdade em mais este vagão do extenso combóio de denúncias e contraditas que circula num redemoinho. Fica, porém, algum desassossego por nos lembrarmos de que as acusações que têm chegado aos nossos ouvidos já cansados, apesar de contestadas, vêm sendo sistematicamente reconhecidas.