quarta-feira, agosto 17, 2005

Mar de lama agitado



Mar de lama é a imagem que alguma comunicação social, em particular a menos comprometida com o sistema, insiste em utilizar para se referir ao rol de escândalos políticos que continua a desdobrar-se perante os olhos do cidadão brasileiro.
Na sequência da descoberta de um esquema de suborno na empresa estatal Correios e Telégrafos do Brasil, onde um funcionário responsável pelo sector de compras e licitações foi filmado por câmara escondida a receber dinheiro de empresários para atribuição de benefícios (ver crónicas anteriores), está a chegar-se à desmontagem de um esquema de associação criminosa de nível nacional.
O assalto aos cofres públicos e privados realizado por uma quadrilha de políticos, em particular do partido do governo (Partido dos Trabalhadores – PT) e do aparelho do Estado visava, com apoio de empresários corruptos, assegurar por vários expedientes, um deles o suborno, a captura do próprio Estado para uma perpetuação no poder. Um processo que foi apelidado de ditadura branca.
A arca de Pandora donde saem revelações todos os dias parece ser um poço sem fundo.
Segue um resumo das notícias recentes mais relevantes.
Segunda-feira, 15 de Agosto. A TV Record, um dos canais cuja audiência é das melhor cotadas, revela que o banco do Brasil, banco estatal que não é o banco emissor, classifica o PT como "devedor de risco". Em linguagem bancária, significa que a instituição considera muito difícil reaver os montantes emprestados, qualquer coisa como, no mínimo, 50 milhões de reais (1 real equivale, aproximadamente, a 0,33 euros). Para evitar situações semelhantes, o banco fechou a concessão de crédito a partidos políticos, entidades desportivas, e igrejas e associações religiosas.
A Justiça determinou a investigação dos contratos de mais de 2 milhões de reais que a empresa de informática Nova Data celebrou com os Correios. O proprietário da empresa é amigo pessoal do presidente Lula da Silva.
Segundo revelações de Duda Mendonça, o publicitário que trabalha há anos para o PT e foi o responsável pela campanha para as presidenciais de Lula da Silva, os honorários devidos foram pagos directamente em contas que o publicitário teve de abrir no estrangeiro. Ao que tudo indica, algumas destas contas, sediadas em paraísos fiscais, datam de 1997. A exigência foi de Marcos Valério, o empresário, também de publicidade, em cujas empresas era feita a lavagem do dinheiro que circula em todo este processo de corrupção. As verbas depositadas nas contas de Duda Mendonça saíram de contas de empresas de Marcos Valério. Perante isto, deputados da oposição pediram a reabertura e análise dos justificativos de campanha do presidente Luís Inácio Lula da Silva, ou seja, uma auditoria. O objectivo é cruzar informação para averiguar de uma eventual entrada de dinheiros do exterior na campanha do presidente. Se isto for confirmado, Lula estará numa posição crítica, segundo a Lei Eleitoral, já que tal situação se configura ilegal, e é ele quem responde pela campanha.
Em entrevista no Programa do Jô, uma rubrica transmitida na madrugada da TV Globo, de segunda a sexta, do jornalista/entertainer Jô Soares, a deputada federal pelo Rio de Janeiro Denise Frossard deixou claro que os dinheiros envolvidos nos escândalos que têm vindo a público poderão ser provenientes de actividades criminosas, tanto no Brasil, como no exterior. E pergunta: "Quem comprou o Brasil?". A deputada, do Partido Popular Socialista (PPS), figura muito ouvida e estimada pela sua verticalidade e pela sua actuação contra o crime organizado no Rio, enquanto juíza criminal, avança que tem a convicção de que o presidente Lula saberia de tudo o que estava a passar-se. A dúvida que resta é se ele estaria ou não implicado no comando da operação.
Terça-feira, 16 de Agosto. Pelos microfones da Central Brasileira de Notícias (CBN) ouvimos o depoimento de Emerson Palmieri, ex-tesoureiro do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), partido por onde tudo começou, tanto nas acusações feitas como nas sofridas. Palmieri contrariou uma declaração anterior de Marcos Valério, segundo a qual ele, Palmieri, teria acompanhado o empresário a Portugal em viagem de passeio, oferecida por este último, seu amigo, para se restaurar de cansaço físico e psicológico. Sem margem para dúvidas, o tesoureiro deixou claro que não tem nenhum vínculo de amizade com Valério, e afirmou que foi a Portugal com o empresário, onde chegou às 11 horas do dia 25 de Janeiro deste ano, não para passear, mas para estabelecer contactos com a Portugal Telecom, na qualidade de representante do PTB. Valério apresentou-se como delegado do PT. O objectivo seria conseguir dinheiro da companhia portuguesa para equilibrar as contas daqueles dois partidos. Se o negócio tivesse dado certo, diz Palmieri, o dinheiro entraria através de uma empresa de telecomunicações brasileira. Juntemos isto a tudo o que foi escrito na crónica anterior sobre a Portugal Telecom, e o facto de os principais depositantes do dinheiro deste esquema, até agora identificados, serem empresas de telecomunicações. Dá para que a comissão de inquérito que investiga o caso possa colocar algumas questões interessantes – se nisso estiver interessada.
Em Brasília, associações de estudantes, associações de moradores, centrais sindicais, Movimento dos Sem Terra (MST) e elementos ligados à Pastoral da Terra organizaram uma manifestação contra a corrupção, contra a política económica e a favor do governo. Não se pode condenar os actos de um agente e, ao mesmo tempo, apoiá-lo. Talvez esta contradição tenha contribuído para o fracasso do evento. Onde se esperavam 20 mil manifestantes compareceram 8 mil, segundo a TV Record. Não obstante, o presidente Lula fez questão de receber pessoalmente os organizadores.
À CBN (Central Brasileira de Notícias) o vice-presidente José Alencar, do Partido Liberal (PL), confirmou que ele e Lula da Silva haviam estado, em 2002, juntamente com José Dirceu, o ex-ministro chefe da Casa Civil de Lula e homem forte do PT, recentemente afastado na sequência do apuramento destes escândalos, Delúbio Soares, ex-tesoureiro do mesmo partido, também e pelos mesmos motivos afastado, e o empresário Marcos Valério, num apartamento onde foi negociada a passagem de, pelo menos, 10 milhões de reais do PT para o PL, em troca do apoio nas eleições que culminou com a presidência de Lula. Luís Inácio e Alencar, numa sala à parte, não teriam participado nas negociações.
O presidente Lula da Silva, "embora sem qualquer relação com pressões originadas na crise política", segundo alguém disse, distribuiu 1 bilhão de reais por 13 ministérios, com a maior fatia para a educação e a saúde, e pela entidade responsável pela infraestrutura dos aeroportos.
Quarta-feira, 17 de Agosto. Uma manifestação promovida em Brasília por partidos de esquerda, contra a corrupção e contra o governo, terá congregado de 12 mil a 15 mil pessoas, segundo dados da polícia militar. Lula da Silva, logo que soube da data desta realização, marcou para a Bahia a sua presença num acto de terceira linha.
A Associação dos Magistrados Brasileiros tornou pública uma posição em que exige ética nos actos políticos, e a punição de todos os culpados no estendal de escândalos que assolam o país.
O senador Eduardo Suplicy, do partido do governo (PT) em São Paulo, escreveu ao presidente Lula da Silva pedindo que ele se desloque ao Congresso para explicações. Suplicy foi um dos responsáveis pelo requerimento que criou a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito dos Correios, cujas investigações estão a pôr em causa toda a credibilidade do governo Lula.
Waldomiro Dinis, o ex-assessor do ex-ministro José Dirceu, segunda figura da Casa Civil do presidente Lula quando Dirceu era o chefe, foi hoje indiciado por corrupção activa. Waldomiro exigia comissões (propinas, como aqui se diz) a um empresário de jogo, Carlos Augusto Ramos, conhecido por Carlinhos Cachoeira. O dinheiro, segundo acusação, destinava-se a financiar campanhas eleitorais de membros do PT e do PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), da base aliada, em 2002. Do mesmo modo, Carlinhos Cachoeira foi indiciado, mas por corrupção passiva. O seu advogado declarou contestar o motivo do indiciamento, uma vez que, defende, Cachoeira terá sido alvo de extorsão. Waldomiro foi presidente das Loterias do Estado do Rio de Janeiro (Loterj), e, para além destas negociatas em benefício de políticos em 2002, notícia que em Fevereiro de 2004 colocou o Palácio do Planalto (sede do Governo) em posição delicada, está envolvido em esquemas duvidosos relacionados com o jogo. Ligado a isto, como tentáculos do mesmo polvo, o Ministério Público vai investigar 155 políticos do Rio de Janeiro, 113 deputados e 42 vereadores, cujo património será avaliado. Segundo reportagens publicadas pelo jornal O Globo a partir de 20 de Junho deste ano, 27 deputados do Rio aumentaram os seus bens em mais de 100%, entre 1996 e 2001, o mesmo acontecendo a 14 vereadores, entre 1998 e 2003.
Está a ser investigado um contrato sem licitação e suspeito de sobrefacturação, celebrado entre a estatal ECT (Empresa de Correios e Telégrafos do Brasil) e uma empresa de Sílvio Pereira, o ex-secretário-geral do PT, afastado na decorrência dos actuais escândalos político-financeiros.
Rogério Burati, secretário municipal na cidade de Ribeirão Preto, estado de São Paulo, quando o actual ministro da Fazenda, António Palocci, era o presidente da autarquia, foi hoje preso, acusado de formação de quadrilha, lavagem de dinheiro e destruição de provas. Ilegalidades cometidas em licitações de obras públicas, verificadas em 1993, levaram Palocci a demiti-lo em 1994. Segundo a TV Record, alguns telefonemas recentes entre Burati e Palocci, que serão investigados por quebra de sigilo telefónico, estão a criar um mal-estar adicional no já tão adoentado Palácio do Planalto. A economia é o elo que tem ajudado a manter alguma integridade residual na fragilizada cadeia de governo. Se também ela for contaminada pela epidemia que vem destroçando o país, então a derrocada definitiva do projecto Lula/PT, para o bem e para o mal, poderá ser irremediável e irreversível.
Fecho esta crónica com uma recordação da campanha de 2002 para as presidenciais. Dizia o então candidato Luís Inácio Lula da Silva: "No meu palanque, corrupto não sobe. No meu governo, corrupto não entra".