domingo, julho 10, 2005

Ainda a corrupção nos Correios brasileiros


As conclusões a que tem chegado a Comissão Parlamentar Mista (formada por senadores e deputados) de Inquérito às denúncias de corrupção nos Correios brasileiros (CPMI ou, mais vulgarmente, CPI dos Correios), retira propriedade a que se fale em corrupção apenas nessa empresa pública, tal é a dimensão do extravasamento dessa corrupção que se propaga pelo interior de partidos políticos, obriga à quebra de segredo profissional e de outros sigilos de abastados empresários e de influentes políticos, e demite destacadas figuras públicas das suas funções.
Um respeitado jornalista, âncora de uma conhecida cadeia de televisão, chama aos acontecimentos, prosaicamente, "chuva de lama" e "rio de lama".
O que deu origem a tamanho caudal de impurezas está relatado nas crónicas aqui publicadas em 27 de Maio e 22 de Junho passados, respectivamente. Sobre elas terei de fazer uma rectificação e uma confirmação.
A primeira tem a ver com um cálculo meu de que os ânimos se acalmariam depois das primeiras revelações, e que um qualquer acontecimento mundano, na ocasião sugeri que pudesse ser uma nova telenovela, faria desviar as atenções do cidadão comum, apesar de se tratar de um escândalo de avantajadas proporções. De tal modo estava eu convencido, que pensei não tornar a falar mais ao assunto, por ele, certamente, cair no esquecimento. Bem me enganei. À medida que os trabalhos da CPI progridem, mostram um enredo que faz parecer aprendiz o melhor roteirista de telenovelas do país da telenovela.
Quanto à confirmação, é a de que o funcionário dos Correios responsável pelo departamento de compras, flagrado a receber comissões, aqui chamadas "propinas", por uma câmara escondida, não era mais do que um simples peão no tabuleiro do jogo, um peixe miúdo, como costuma dizer-se. Dele é que nunca mais se falou.
De então para cá, o que sucedeu de relevante?
O secretário-geral e o tesoureiro do Partido dos Trabalhadores (PT), principal apoio organizado do presidente Lula da Silva e de seu governo, demitiram-se na semana passada dos respectivos cargos, conforme pretendia a linha mais à esquerda do partido, crítica feroz do governo, em particular no que toca ao projecto económico, e contrariamente ao que a maioria petista advogava. Os governistas sempre quiseram protegê-los contra tudo e contra todos. Principalmente contra as evidências. Esse foi um erro fatal para a imagem do partido.Saíram, negando qualquer conhecimento do que se passava no PT. Posição no mínimo estranha, dadas as funções privilegiadas que desempenhavam, a rede de relações que mantinham, a amplitude e a gravidade dos factos narrados, e a dimensão das verbas envolvidas.
Se essas demissões tivessem ocorrido há mais tempo, poderiam ter sido tomadas como um reconhecimento implícito da sua responsabilidade no processo, mas também poderiam ter sido explicadas à opinião pública como um acto de boa vontade para desimpedir o caminho a uma investigação profunda e objectiva. Restava o benefício da dúvida.
Agora não. Os dois parecem cada vez mais implicados e comprometidos no esquema do "mensalão", a verba paga pelo PT (30 mil reais por mês) a deputados da oposição para que estes votassem favoravelmente as propostas vantajosas ao governo. A Superintendência da Polícia Federal (PF), em São Paulo, fez questão de os ouvir. Embora interrogados isoladamente, ambos se fizeram acompanhar de um dos maiores criminalistas brasileiros, o mesmo que defendeu casos recentes de desvio de dinheiros públicos e de fuga de capitais para o estrangeiro, por parte de um ex-presidente de autarquia de uma das maiores cidades do país. Escândalo gordo que, pelo andar da carruagem, vai ficar em águas de bacalhau.
Os dinheiros movimentados serão de origem duvidosa. Segundo denúncias que se avolumam diariamente, poderão provir de fontes privadas e públicas.
Surge em cena, entretanto, uma figura cinzenta, próspero empresário, dono de uma empresa de publicidade e de mais 14 sociedades, algumas das quais, segundo afirmou, foram criadas para substituir outras que tinham problemas com a Receita Federal e com a Previdência. Há suspeita de que estas empresas fariam lavagem de dinheiro público para o PT.
Amigo pessoal e íntimo do tesoureiro deste partido, parece ter sido o operacional do "mensalão". Sem qualquer cargo político ou partidário, dispunha, no entanto, duma forte e estendida influência, a ponto de negociar com o governo a atribuição de cargos políticos.
Entre 1999 e 2005, o empresário terá movimentado em bancos, pelas suas empresas, 1,2 bilhões de reais (1 real vale, aproximadamente, 0,33 euros), dos quais 21 milhões sem justificativo aparente, e 500 milhões sem proveniência determinada. A quebra do sigilo bancário revelou que tais movimentos não se coadunam com o património existente.
O PT conseguiu empréstimos de alguns milhões junto de vários bancos brasileiros, um dos quais aquele por onde circulavam as verbas do "mensalão". O empresário aparece como negociador desses empréstimos. Em dois deles, respectivamente de 2,450 milhões e de 3 milhões de reais, foi mesmo avalista, tendo liquidado uma primeira prestação de 350 mil que o PT não honrou. No último empréstimo, o presidente do PT era o tomador, e o tesoureiro entrava como avalista também.
Após o pagamento daquela prestação, retirou o seu nome como fiador, segundo revela. No entanto, ninguém é capaz de indicar quem o substituiu junto da entidade bancária credora. Um dos bancos atingidos vem a terreiro dizer que todas as operações foram efectuadas de forma transparente e legal, mas, entretanto, exonerou dois vice-presidentes da área financeira.
Ouvido pela CPI dos Correios durante mais de uma dezena de horas, esta nebulosa personagem apresentou-se no plenário munido de um habeas corpus preventivo que o protegeria de prisão, caso o seu comportamento durante o interrogatório o justificasse. Medida suspeita, pois se quem não deve não teme, que cautelas motivaram o empresário?
Poderá parecer estranho a anuência do Supremo Tribunal Federal em tal concessão. Para um leigo, assemelha-se a um acto da Justiça a entravar a Justiça.
Com este documento na mão, o empresário limitou-se a negar tudo aquilo de que era acusado, e a não responder àquilo que poderia ser esclarecedor. Para abrilhantar a actuação, não se acanhou de chamar ao momento a morte de um filho, passada há muitos anos, por doença fatal, como se isso fosse relevante para o caso em apreço. E chorou, chorou comovidamente.
Aliás, o choro está a tornar-se uma constante nas emissões televisivas, por parte das figuras que vão sendo indiciadas neste processo.
Há dias foi a vez do presidente do PT que, sem mais nem quê, numa entrevista desatou a chorar, lembrando-se subitamente de como tinha sido torturado nos tempos da ditadura militar, ente 1964 e 1984. Nada a ver com o assunto em pauta, claro.
Anteontem pudémos assistir a uma sessão de choro por parte de uma deputada do PT, acusada pelo ex-motorista de ter recebido de São Paulo 200 mil reais para efeitos de compra de favores políticos. Este motorista defraudou-a em 400 reais por uso abusivo do seu cartão de crédito, mas ela não apresentou queixa. O silêncio dourado que agora se quebrou.
Diariamente se assiste a cenas que desafiam a imaginação, e se toma conhecimento de notícias insólitas.
Um secretário do PT no Ceará, assessor do irmão do presidente do partido, é apanhado no aeroporto de São Paulo com 200 mil reais numa mala, e 100 mil dólares americanos escondidos nas cuecas. Mente à polícia, dizendo que é agricultor e que o dinheiro provinha da venda de produtos agrícolas. Pretendia deslocar-se para Fortaleza, capital do Ceará. Encontra-se preso. Relação ou não com o caso Correios? O estado de desconfiança é tal, que na cabeça do homem da rua tudo se associa.
Descobriu-se que o empresário amigo do PT ludibriou a comissão de inquérito. Mercê do habeas corpus, não será preso como se esperaria; apenas se repetirá o interrogatório, provavelmente para continuar a iludir a verdade. Entretanto, contas bancárias suas no valor de 8,5 milhões de reais foram recentemente congeladas por ordem judicial para regularização de dívidas à Previdência.
A secretária do empresário fez declarações reveladoras na CPI, e foi por ele acusada de tentativa de extorsão.
Uma multidão de notáveis incrimina outra multidão de notáveis. Mas todos os notáveis são unânimes em afirmar que de nada sabiam. Ministros são apontados. Porém, continuam negando e permanecem tranquilamente no ministério. Tanto no PT como no Governo, todos concordam em que ignoravam por completo o que se estava desenrolando debaixo dos seus narizes.
Mas os factos vão desmentindo os desmentidos, e à medida que se puxam os fios da manta, mais ela se desmancha, deixando a descoberto muitos e alargados buracos.Os acontecimentos precipitam-se.
O secretário das comunicações do PT é substituído.
Numa reunião das cúpulas do partido em São Paulo, sábado 9, de manhã, o presidente do partido deixa o lugar, perante a concordância e o aplauso unânimes do directório. Ainda na noite anterior garantira à comunicação social que não renunciaria e que, ao contrário, prosseguiria na liderança do PT. Talvez as lágrimas oferecidas na tv, dias atrás, por razões despropositadas no contexto da entrevista, fossem uma antecipação sentida dos efeitos da resolução agora tomada – de moto próprio ou por imposição politico-partidária.
As demissões sucessivas que se têm verificado abrem uma nova frente na já difícil e conturbada situação governativa. É que algumas das personalidades escolhidas para recompor o topo fazem parte da equipa ministerial de Lula da Silva. Nem o partido o poupa.
O ministro da Controladoria Geral da União declara, finalmente, no mesmo sábado, à noite, que há corrupção nos Correios.
A crise política, que mais do que política é uma crise ética e de valores, numa sociedade que tem por lema "dinheiro fácil", já deu lugar a mais CPI´s, para além da dos Correios: a do Banestado, um caso antigo que dormia em águas mornas, de um banco com ligações a um outro dos que agora estão directamente envolvidos nos dinheiros do PT; o do "mensalão", que alberga, também, o inquérito à compra de votos supostamente realizada em 1997 para a emenda da reeleição presidencial, no tempo do anterior presidente, Fernando Henrique Cardoso; e o dos bingos, outro que estava congelado, e que diz respeito à extorsão de dinheiro a um empresário de jogo, por parte do adjunto do ex-ministro chefe da Casa Civil, recentemente demitido, amigo íntimo e braço direito do presidente Lula da Silva.
Por este andar, não haverá senadores nem deputados em número suficiente para integrar e fazer funcionar as comissões de inquérito constituídas, sem falar nas que ainda possam vir a ser criadas. Além disso, o país parou do ponto de vista legislativo.
A comunicação social, ainda que discretamente, fala em impeachment, pelo menos para afirmar que esse não deverá ser o caminho. Mas fala. Alguns analistas adiantam que a oposição optará, de preferência, pela sangria do presidente até o deixar incapaz de uma recandidatura. Lula é considerado já um presidente à mercê dessa oposição, como um rato distraído apanhado pelas unhas de um gatarrão astuto e sem pressas.
Parece aproximar-se o aniquilamento político para Lula da Silva.
Saberia o presidente de tudo o que estava a acontecer? Essa, uma razão plausível porque, inicialmente, obstaculizou a criação e o funcionamento da CPI dos Correios. Outra possível reside na tentativa, afinal falhada, de cobertura política para os seus homens de confiança e para o partido. E não pensemos em mais nenhuma.
Como se diz em Portugal, ainda agora a procissão vai no adro. Mas a verdade é que, pelos vistos, a cabeça de alguns santos já saltou do alto dos andores. À cautela, outros bem-aventurados apearam-se e puseram o altar à disposição.
O povo desiludido espera e aguenta.-Próximo!...