sexta-feira, agosto 19, 2005

Impugnação de mandato



O termo inglês impeachment, no seu significado de impugnação de mandato, começou a ser utilizado sem reservas no discurso político do Brasil, em relação ao presidente da república, Luís Inácio Lula da Silva.
Para que tenha expressão prática, o impeachment deverá obedecer a três condições em simultâneo.
Primeiro, é necessário que haja um facto, ou factos que, comprovadamente, constituam, da parte do presidente, delitos, sejam eles de responsabilidade, sejam de ordem cível, sejam, ainda, do foro criminal. Depois, o pedido de impugnação terá de ser aceite por dois terços, pelo menos, dos parlamentares da Câmara dos Deputados. Finalmente, a impugnação deverá ter o apoio directo da população, demonstrado, por exemplo, em manifestações de rua.
Em Maio deste ano surgiram as primeiras denúncias concretas e públicas sobre um esquema de arrecadação de dinheiros recebidos de empresários, em troca de favores em licitações concedidos na empresa estatal Correios e Telégrafos do Brasil.
Pouco depois, Polícia Federal, Ministério Público, comissões parlamentares especialmente criadas para esse efeito e outros correlacionados, e órgãos de comunicação social iniciaram um complexo e moroso processo de pesquisa.
Aquilo que já foi tornado conhecido, fruto dessas investigações, levou muitos políticos a exprimir o parecer de que há factos comprometedores, pelo menos, para o presidente da república. Não é aceite sem um sorriso a conjectura de que nada saberia acerca do gigantesco esquema de corrupção que há largos anos vem fervilhando no país, levado a cabo pelo partido que fundou, de que foi presidente e de que é presidente de honra, onde tem amigos íntimos que colocou em posições-chave no governo e noutros lugares de destaque no aparelho do Estado.
A auditoria, recentemente solicitada, às contas da sua campanha de 2002 poderá, também, remetê-lo para uma situação melindrosa, enquanto responsável pela campanha, se for provado que houve financiamento com verbas do exterior.
Um outro ponto quente prende-se com uma dívida contraída pelo presidente Lula junto do seu partido, de 29.436,26 reais. Depois de várias diligências, soube-se, finalmente, que quem pagou as parcelas do empréstimo foi Paulo Okamotto, ex-tesoureiro da campanha de Lula da Silva em 1989.
Actual presidente do SEBRAI (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas, dotação anual de 900 milhões), nomeado por Lula, diz que pagou a dívida do seu próprio bolso para não incomodar o presidente com ninharias.
Porquê se escondeu isto da opinião pública, e só quando o banco do Brasil foi instado a mostrar as contas do PT apareceu o pagador? Porquê este gesto, quase caritativo, de um cidadão que paga do seu bolso as dívidas do presidente?
Para além de parecer uma história mal remendada, com contornos pouco claros e pouco credíveis, recorde-se que um partido político não é um banco, nem qualquer outro tipo de instituição financeira. Logo, não está autorizado a fazer empréstimos, seja a quem for, filiado ou não, mesmo tratando-se de Lula da Silva. Em condições normais, isto é, sem a existência de recursos não contabilizados, provenientes de fontes suspeitas, as verbas dos partidos são-lhes atribuídas pelo Estado para constituição daquilo a que se chama o fundo partidário. Ora, se foi desse fundo partidário que saiu o empréstimo a Lula da Silva - e donde poderia ser? - o facto incorre em ilegalidade.
Os depoimentos dos inquiridos ao longo das investigações, ainda que, na generalidade, tentem poupar o presidente, vão permitindo juntar as peças do quebra-cabeças que, cada vez mais, tem o retrato de Lula da Silva. Provavelmente, muito em breve ele não escapará da acusação de culpa de responsabilidade, a menos que alguma bem engendrada "operação abafa", ou acontecimentos inesperados, o coloquem definitivamente acima de qualquer suspeita.
Parece, pois, que a primeira condição poderia vir a cumprir-se a breve trecho.
Quanto à segunda, a aceitação do pedido de impeachment pelos deputados, a opinião dos parlamentares está dividida, não tanto por razões jurídicas, mas por razões de conjuntura política.
No panorama actual, não parece haver alternativas imediatas e vantajosas à Administração em funções.
Lula foi eleito por 53 milhões de cidadãos. O seu partido, o Partido dos Trabalhadores (PT) tem 800 mil filiados.
Para além de se encontrar neste momento numa situação caótica, enfrentando, exteriormente, o descrédito popular e a vergonha pública, e, internamente, uma crise de desmembramento, e, ao mesmo tempo, de choque de bandos residuais em luta pelo poder, o PT não está em condições de polarizar massas, seja vendendo doutrinas, seja fornecendo líderes.
O vice-presidente, José Alencar, para além de comprometido com negociatas de compra de partidos para apoio à campanha em que concorreu na lista de Lula, em 2002, apesar de nada ter a ver com o PT, não é figura do agrado da maioria da oposição, face às suas teses quanto à política económica.
O presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti, não está à altura, embora deselegantemente já tenha dito que sim, nem para assegurar um eventual período de transição, por mais curto que seja.
Foi ele quem propôs na Câmara, pouco depois da sua eleição, um aumento de mais de 80% para os deputados, alegando em tom galhofeiro que o povo não se importaria – o povo que foi contemplado com um aumento de salário mínimo da ordem dos 15%. O despropósito foi tal, que os próprios deputados rejeitaram a proposta.
Sem espírito nem estofo de estadista, não é de considerar.
Quanto aos partidos da base aliada, a maioria está comprometida com os escândalos de corrupção, outros se transferiram para o lado de lá da trincheira.
Os partidos declaradamente de direita, para além de não possuírem espaço de afirmação no momento que se vive, estão, na generalidade, também eles mergulhados na lama que cobre o país.
Há nos pequenos partidos de esquerda alguns líderes que têm vindo a conquistar a opinião pública. Mas, sozinhos, não têm expressão eleitoral, e não parece haver disposição para se coligarem numa frente unida de esquerda.
Resta o partido da alternância, Partido Social Democrata Brasileiro (PSDB), donde saiu o presidente anterior, Fernando Henrique Cardoso. Pela sua dimensão e implantação, poderia ser uma alternativa a considerar. Acontece, porém, que o candidato que possui é um perdedor da campanha de 2002, frente a Lula. José Serra já foi ministro. Actualmente é o presidente da autarquia de São Paulo, que conquistou ao PT no ano passado. Pouco tempo decorreu para mostrar serviço. Apesar de estar a crescer em intenção de voto num despique com Lula, as projecções destinam-se a uma possível candidatura em 2006, e não a uma tomada de posse imediata, ou quase, como seria a eventualidade da impugnação do mandato de Lula.
Este quadro geral retrai os deputados quanto à aceitação de um impeachment já.
E a vontade popular, a terceira condição, decisiva alavanca neste processo?
As recentes manifestações têm evitado, embora ancoradas em razões diferentes, falar de impeachment. Por motivos óbvios, as que apoiaram o governo, ainda que, contraditoriamente, tenham condenado a corrupção e a política económica. As que condenam o governo, por motivos tácticos.
Estas manifestações, planeadas, montadas e orquestradas por organizações de variada índole, de associações de moradores a sindicatos, de grupos estudantis a agricultores sem terra, nada têm de espontaneidade popular. O povo não está em condições de vir para a rua pedir a impugnação do mandato presidencial.
Atónito perante os acontecimentos que se atropelam desde Maio último, o povo está confuso, desiludido e desconfiado. A profusão de denúncias e confidências, não poucas vezes contraditórias, que todos os dias, a toda a hora, lhe martelam a cabeça, seguida imediatamente de igual número de contestações e polémicas, levaram a que não acredite em ninguém, em especial porque, com frequência, as denúncias negadas acabam por se confirmar.
Desmotivado por tudo isto, o povo não desce à rua, salvo em algumas, poucas, acções locais e diminutas, desarticuladas, que mais devem ao folclore do que à autêntica contestação política.
Os políticos são avaliados pela mesma bitola. Este não é melhor do que aquele. São iguais. Tanto faz este como aquele. Todos iguais.
Assim, não há possibilidade de mobilização.
Este estado de espírito é perigoso. Constitui uma porta aberta para o oportunismo político, o despotismo, a tirania, tal como a que já fermentava, de forma encapsulada entre os actuais detentores do poder, e de forma aberta dentro de partidos, com o PT à cabeça.
O impeachment, nas circunstâncias em que o país se encontra, não parece ser a solução mais eficaz. Antes de o promover, será necessário criar novas condições de governabilidade que restaurem uma confiança sadia no poder público, tanto dentro como fora do país. Será preciso, acima de tudo, moralizar o Estado. Estarão dispostos a isso os senhores do poder, nas suas várias instâncias?
Se tudo ficar na mesma, apesar das conclusões tenebrosas a que os vários níveis de investigação chegam no quotidiano, com impeachment ou sem ele, o horizonte não será muito luminoso neste país de sol.