quarta-feira, agosto 24, 2005

Uma nova personagem, mais lenha na fogueira


Chama-se António Oliveira Claramunt, mas é conhecido no Brasil inteiro por Toninho da Barcelona.
Originário da vila Barcelona, conjunto habitacional situado numa pequena cidade a poucos quilómetros de São Paulo, desde muito novo conviveu com o mundo do contrabando de divisas, em particular de dólares americanos.
Também cedo se iniciou na actividade, e aprendeu depressa. Quando o pai adoeceu gravemente, tomou conta do negócio e num instante se tornou no maior doleiro do país.
Doleiro, como é fácil de entender, designa de forma suave, tão à moda brasileira, o traficante de moeda.
A empresa de que é sócio proprietário, a Barcelona Tour Viagens e Turismo Lda, autorizada a funcionar como agência de turismo e a operar como casa de câmbios no mercado de taxas flutuantes, movimentou, entre 1996 e 2002, 500 milhões de dólares.
Por via dessa actividade, viu-se envolvido no caso Banestado, um escândalo que data do fim dos anos 90.O Banestado, um banco com sede em Curitiba, a capital do estado do Paraná, na região sul, foi alvo de um processo investigatório por transferências clandestinas para o exterior, entre 1996 e 1999, calculadas em 30 bilhões de dólares americanos, naquilo que ficou conhecido como operação Macuco. Os principais clientes nessa trama parece terem sido políticos, empresários e doleiros. Estes últimos, por sua vez, serviam políticos e empresários.
As remessas eram dirigidas à agência do banco em Nova York, e daí canalizadas a paraísos fiscais, deixando atrás de si um rastro de lavagem de dinheiro e evasão fiscal.
Para investigar o delito e apurar culpados, pelo menos supostamente assim se pretendia, foi criada uma comissão parlamentar de inquérito, a CPI do Banestado. José Mentor, relator desta comissão, era (e é) membro do partido no poder, o Partido dos Trabalhadores (PT).
Toninho da Barcelona operara durante anos remessas clandestinas para políticos e partidos, de que o PT não foi o pior cliente, nem o mais recente. Por isso, José Mentor não estava muito interessado em que ele fosse ouvido naquela CPI, bem pelo contrário.
Porém, sujeito a algumas pressões, embora pouco consequentes, como veio a verificar-se, convocou o doleiro para depor em 20 de Abril do ano passado. Fê-lo, no entanto, com apenas duas horas de antecedência, para que ele não pudesse estar presente. Assim aconteceu, e Toninho de Barcelona nunca mais foi chamado à comissão.
O então presidente da CPI, senador Antero Paes de Barros, acusa hoje o relator: "Houve um estranho afrouxamento na convocação do Toninho. O relator parecia não ter interesse no depoimento".
Pois claro que não tinha, como não tinha noutras coisas. No relatório de conclusão, suprimiu todo o capítulo referente ao Banco Rural, nessa altura suspeito de comprometimento no envio de remessas para o exterior, e hoje enrolado em todo o esquema de corrupção política que diariamente se desnuda com novas cenas e novos protagonistas.
Toninho da Barcelona acabou condenado a 25 anos por evasão de divisas, e metido no presídio Adriano Marrey, em Guarulhos, município a nordeste da região metropolitana de São Paulo, a pouco mais de 15 quilómetros do centro desta cidade, capital do estado com o mesmo nome.
Agora, Mentor diz que não conhece o doleiro, mas isso não evita que Toninho da Barcelona fale. E ele já começou a falar – e a fazer tremer.
Revelou que o PT faz encaminhamentos ilícitos de dinheiro para fora do Brasil desde a primeira campanha do actual presidente da república, Luís Inácio Lula da Silva, ou seja, 1989. Segundo ele, nos anos 90 as operações expandiram-se em direcção a dois receptadores: o Trade Link Bank, fundado e mantido pelos directores do Banco Rural, no paraíso fiscal das Ilhas Caimão, no Caribe, e uma empresa criada no Panamá, outro lugar de delícias para fuga ao fisco.
Em recentes depoimentos, Duda Mendonça, o publicitário que há muito trabalha para o PT e tem sido o responsável de propaganda das campanhas de Lula da Silva, comprovou que o dinheiro que recebeu de honorários por estes serviços fora depositado pelos clientes no Trade Link das Ilhas Caimão.
Toninho da Barcelona é um homem novo, tem família constituída, e quer ver reduzida a sua pena. Com esse fito, no dia 24 de Junho último pediu autorização para dar uma entrevista colectiva (conferência de imprensa) onde faria revelações importantes.
Curiosamente, ou nem tanto, nesse dia estalou uma rebelião no presídio, e o doleiro foi acusado de ser um dos cabecilhas. Apesar de novato prisional, sem experiência de organização de motins, apesar de ter sido apontado como instigador apenas de forma anónima e vaga, apesar de nesse dia esperar a primeira visita da filha de 14 anos, as autoridades consideraram-no culpado e, em consequência, transferiram-no para uma prisão de segurança máxima, em Avaré, no interior do estado, a 270 quilómetros de São Paulo.
Mesmo possuindo curso superior, as autoridades não lhe concederam o tratamento preferencial, em termos de alojamento, previsto na Lei. Pelo contrário, a cela que lhe destinaram é de condições inferiores, e só tem direito a banho de sol uma vez por semana. Visitas íntimas, nem pensar. Para além disso, o director de disciplina da cadeia pediu ainda ao juiz que determinasse o seu internamento em cárcere isolado, por ser "pessoa de altíssima periculosidade".
O doleiro queixa-se de maus tratos físicos e psicológicos, e teme pela vida. Diz que a sua situação piorou quando transmitiu a intenção de falar publicamente sobre o que sabe quanto à evasão de divisas no Brasil.
O advogado que o defende, Ricardo Sayeg, conta que Toninho foi obrigado a assinar na prisão um insólito documento em que se responsabiliza pela sua integridade física. Considerando o seu cliente um preso político, Sayeg diz que vai apelar para a Amnistia Internacional. Segundo ele, Barcelona foi interrogado por nove delegados da Polícia Federal sem a sua presença. Por outro lado, teve a visita, ao que parece, ilegal, de pessoas que diziam ser advogados do PT, e pretendiam apurar até que ponto iam os seus conhecimentos quanto às movimentações clandestinas de dinheiro.
Em primeiras declarações já prestadas em São Paulo a uma delegação da Comissão Parlamentar de Inquérito da estatal Correios, empresa onde se desencadeou a onda de escândalos político-financeiros que estão a ser investigados, envolvendo altas figuras do governo e do PT, Toninho da Barcelona denunciou pessoas como Márcio Tomaz Bastos, ministro da Justiça, José Dirceu, ex-ministro chefe da Casa Civil de Lula e amigo íntimo do presidente (pelo menos foi, até à data do afastamento do cargo por envolvimento naqueles escândalos), José Janene, líder do Partido do Progresso (PP) na Câmara dos Deputados, Henrique Meireles, presidente do Banco Central (o banco emissor do Brasil) e José Mentor, amigo de Dirceu e já acima referido como relator da CPI do Banestado. O primeiro admite transacções, mas protesta que foi tudo feito na legalidade. Só não se percebe por que razão as terá feito com o doleiro, e não com uma instituição idónea. Quanto aos outros, dizem não conhecer o delator.
Mesmo com todas as reservas que o contexto aconselha, afigura-se imperioso, urgente e importante ouvir o doleiro Toninho da Barcelona. Foi essa conclusão a que chegou a CPI dos Correios, onde ele vai ser inquirido brevemente. Até lá, já muita gente começou a mexer-se com medo, e muita gente com medo começou a ficar paralisada.Como não há fumo sem fogo, aguardemos. Assim sobreviva Toninho da Barcelona.