sexta-feira, outubro 21, 2005

O recado


O presidente da República do Brasil, Luís Inácio Lula da Silva, concluiu na quarta-feira 19 mais uma tarefa. Na opinião de alguns, tal tarefa seria para ele uma das mais gratificantes da função governativa: viajar.
Não poupando o avião intercontinental que mandou construir expressamente para a presidência, no seu mandato, o que lhe custou críticas de alguns sectores da sociedade brasileira, e 200 milhões de reais aos cofres do Estado (com um real a cerca de 0,33 euros), mais do que gastou em obras de saneamento no Brasil inteiro, o presidente Lula já visitou 83 países, segundo dados publicados na Internet pela sua Secretaria de Imprensa e Divulgação.
Em 2003 foram 35, em 2004 foram 21, e este ano a marca vai em 27. Ultrapassou, assim, as viagens feitas por Bush, e atingiu cerca de o dobro das efectuadas em igual período pelo anterior presidente, Fernando Henrique Cardoso.
Quando Lula e o partido a que pertence, o Partido dos Trabalhadores (PT), eram oposição, manifestavam-se como críticos acérrimos das deslocações internacionais de Fernando Henrique. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.
Desta vez o roteiro incluiu quatro países europeus.
O primeiro, no dia 13, foi Portugal, onde participou na 8ª Cimeira Portugal-Brasil, na cidade do Porto.
O segundo, em 14 e 15, teve lugar em Salamanca, na Espanha, que albergou a 15ª Cimeira Ibero-Americana.
Nos dias 16 e 17 esteve em Roma para o 60º aniversário da FAO, a organização das Nações Unidas para a agricultura e alimentação. Quis ver o Papa. A diplomacia brasileira desenvolveu esforços nesse sentido, mas Sua Santidade tinha mais que fazer. Chama-se a isso, literalmente, ir a Roma e não ver o Papa.
Finalmente, o resto do dia 17 e o seguinte foram dedicados a Moscovo. Aqui, assinou um acordo de utilização da energia nuclear para fins pacíficos. Cumprimentou o astronauta brasileiro que partirá para o espaço numa sonda russa no próximo ano. Tentou convencer os russos a continuarem a consumir a carne brasileira, garantindo que a febre aftosa no Brasil estava dominada.
Neste particular, os Russos, principais importadores mundiais dos bovinos do Brasil, reafirmaram a sua amizade para com o povo brasileiro, que muito admiram, declararam apreciar a carne dos bovinos brasileiros, que muito saboreiam, mas, quanto a consumir, vão deixar as coisas como estão, ou seja, manter o embargo até haver reais garantias de sanidade dos animais. Portanto, o principal objectivo deste roteiro europeu de Lula foi por água abaixo.
O presidente tem querido justificar as suas viagens com duas ordens de razões.
Uma, de carácter comercial, que considera as visitas internacionais vantajosas para a balança de pagamentos do Brasil, ao promover as exportações brasileiras.
Outra, de pendor político, argumenta que as viagens do presidente Lula poderão projectar o país no mundo, com o intuito de conseguir uma liderança sobre os países do terceiro mundo, em particular os da América do Sul. Alguns dos seus críticos reagem, dizendo que o presidente apenas pretende difundir a sua própria imagem no exterior.
Quanto ao fundamento de natureza comercial, não se sabe se a relação custo/benefício justifica os encargos com as deslocações do presidente e das suas comitivas, às vezes principescas. Ou ainda é cedo para fazer essa avaliação, ou, como alguns defendem, não há benefício algum.
Ao contrário, sim, são notórios os efeitos negativos de alguns acordos. O caso mais recente é o da China, onde, com pompa e circunstância, Lula da Silva se deslocou. No regresso enalteceu a viagem e os acordos conseguidos. Foi uma festa.
Pouco tempo depois, os chineses começaram a criar obstáculos à entrada de algumas produções brasileiras, por não estarem de acordo com as normas do importador. Em contrapartida, invadiram o mercado brasileiro com os seus produtos.
Lula ficou de cabeça perdida. Desesperado, mandou representantes à China para tentar rever acordos e remediar os estragos. Os Chineses, com o sorrisinho que os caracteriza e que de amarelo nada tem, disseram, simplesmente, não. De caminho, avisaram, continuando a sorrir, que se o Brasil colocasse entraves às importações chinesas poderia vir a arrepender-se.
Quanto à liderança política no terceiro mundo, outros chefes de estado a poderão disputar com vantagem, pelas condições políticas e sociais, e de crescimento económico dos respectivos países.
Está na hora de os governantes brasileiros olharem para o resto do mundo, e perceberem que quantidade não é sinónimo de qualidade. A grande extensão territorial e o elevado número de habitantes do Brasil, só por si não dão ao país o direito automático a qualquer tipo de liderança.
De todas as viagens oficiais ao estrangeiro feitas pelo presidente Lula, a última, à Europa, de que acaba de chegar, deverá ter sido a mais marcante para ele. Em Salamanca, Espanha, no discurso da sessão inaugural da 15ª Cimeira Ibero-Americana, o secretário-geral da ONU, Koffi Annan, afirmou claramente que "erradicar a pobreza exige combater a corrupção, promover a transparência e a boa governação".
O presidente Lula e a primeira dama estavam sentados na primeira fila.
O recado tinha destinatário inconfundível. Mas, para o caso de Lula olhar discretamente para os vizinhos, como se aquilo não fosse com ele, como tem feito nos últimos meses acerca de tudo o que o possa beliscar, três dias depois a Organização Não Governamental (ONG) Transparência Internacional, com sede em Berlim, divulgou em Londres o relatório relativo aos anos de 2003, 2004 e 2005, que reflecte a opinião de qualificados observadores internacionais sobre o grau de corrupção atribuído às relações entre o Estado e a respectiva sociedade.
Foram analisados 159 países. Entre o menos corrupto, a Islândia, no lugar primeiro, e os mais corruptos, no último lugar, o Chade e o Bangladesh, o Brasil obteve a pior classificação dos últimos 8 anos, descendo da 59ª posição para 62ª, aproximando-se, assim, dos mais corruptos.
Numa escala de 0 a 10, em que 10 representa o máximo de honestidade e 0 o mínimo, o Brasil arrecadou a classificação de 3,7. Para a Organização, isto significa, em teoria, que apenas 37% dos brasileiros são honestos. Paga o justo pelo pecador. A mesma organização adverte que o valor 3 corresponde a um grau incontrolável de corrupção no país.
Como será a avaliação do Brasil daqui a três anos, uma vez que este relatório não inclui os escândalos político-financeiros que estalaram durante o ano em curso?
É bom não esquecer o recado do secretário-geral da ONU: "erradicar a pobreza exige combater a corrupção, promover a transparência e a boa governação".
Em todos estes itens o Brasil apresenta fortes carências.



segunda-feira, outubro 03, 2005

Apesar do vale-tudo, Lula perdeu outra vez



O processo de que resultou a eleição do novo presidente da Câmara dos Deputados do Brasil não foi, propriamente, uma pérola de isenção, nem de lisura democrática.
Num regime democrático, pretende-se que os três Poderes que conduzem a vida da Nação – o Legislativo, o Executivo e o Judicial (Judiciário no Brasil) – funcionem de forma autónoma nas respectivas esferas, sem interdependências nem influências mútuas. É a lógica do velho refrão "cada macaco no seu galho".
Mas no Brasil, apesar de país constitucionalmente democrático, as coisas não funcionam assim. Existe uma permanente promiscuidade entre aqueles Poderes. De forma mais velada ou mais aberta, mas existe.
Sem pudores, as interferências fazem-se sentir, viciando as regras do convívio em democracia, facilitando a prática da corrupção, desgastando a imagem dos políticos que ainda permanecem honestos, desencantando os eleitores quanto à participação activa na vida pública e ao acompanhamento dos actos da governação. Neste particular, se o voto não fosse obrigatório no Brasil, os resultados eleitorais dariam aos políticos uma representatividade expressa duvidosa.
Desta forma, as desigualdades sociais e outras injustiças criam raízes cada vez mais profundas.
Quem deveria ser o maior e mais fino modelo de ética no comportamento global e, em particular, no exercício de funções públicas, não o é, muitas vezes escudado em argumentos falaciosos que deformam, com tais exemplos, a cultura moral do povo.
Ora, a imoralidade não impende apenas naquilo que é ilegal. Existe muita imoralidade ainda desregulamentada, em boa parte porque ela sustenta interesses do Poder instituído. Há coisas que não são ilegais, mas que são ilegítimas, e não se pode dizer que tais coisas se apresentam menos condenáveis só porque ainda não foram descobertas, ou porque ainda não se legislou sobre o assunto.
Trazer para o quotidiano estas subtilezas depende da formação moral de cada um. Quanto maior o grau de responsabilidade de um cidadão na hierarquia dos que moldam os destinos de um Povo, maior deveria ser, também, o seu grau de estrutura moral, traduzido pela transparência e pela integridade no exercício da função que lhe foi atribuída, directa ou indirectamente, por esse Povo.
No estado em que se encontram as reservas morais do Brasil, atolado em escândalos político-financeiros que parece não quererem parar, e atingem todos os patamares dos três Poderes, as condições que levaram à queda desabalada do anterior presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti, também ele acusado de envolvimento num esquema de corrupção, causa próxima que rematou o acumular de outros pecadilhos, aconselhariam cautela e bom-senso, no sentido de aproveitar todas as oportunidades para limpeza da tão conspurcada imagem do Governo e do Parlamento.
Assim não o entenderam o presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, nem os seus acólitos. Ou se estes o entenderam, bem o calaram, submetidos à "voz do dono".
Lula escolheu e impôs o seu candidato, através de manobras pouco dignas de uma democracia que defendesse a separação de facto dos três Poderes.
Enviou à Câmara alguns dos seus ministros para angariarem apoios entre os deputados. Fez o mesmo no Senado.
Negociou com os partidos da base aliada, Partido Popular (PP), Partido Liberal (PL), ambos conservadores, e Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) a conquista de votos. São estes os principais partidos implicados nos esquemas de suborno e corrupção que vêm sendo investigados por três Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI´s). O último deles é o autor da denúncia dos escândalos que enlamearam a imagem do presidente e do seu Governo. A todos eles Lula prometeu cargos e, até, um ministério.
Disponibilizou 600 milhões de reais (1 real é, aproximadamente, 0,33 Euros) para o Ministério dos Transportes, nas mãos do PL.
Liberou outros 500 milhões para emendas constitucionais propostas por deputados, até agora congeladas por falta de verba.
Em resumo, o presidente Lula da Silva, usando de uma imoralidade que não fere a legalidade, procurou comprar, literalmente, consciências, sob a mesma filosofia, sem tirar nem pôr, que presidiu à montagem dos referidos esquemas de corrupção, cuja denúncia tem criado constantes obstáculos à governabilidade do país. Assim, não dispõe já de autoridade para dizer que nada sabia do esquema arquitectado anteriormente, uma vez que aquele e este se identificam na ideia geratriz.
Apesar deste vale-tudo, os resultados ficaram muito aquém do esperado. O candidato do governo ganhou por uns escassos 15 votos, margem de grande desconforto numa Câmara de 513 parlamentares, em que o número dos que não votaram é menor do que esta diferença.
O vencedor, Aldo Rebelo, deputado por São Paulo, é militante do Partido Comunista do Brasil (PC do B), partido que tem pautado a sua actuação por permanentes lambuzadelas de botas ao partido no poder, Partido dos Trabalhadores, fundado por Lula, e o principal agente e sujeito dos esquemas de corrupção descobertos. Aldo Rebelo já foi, neste mesmo governo, ministro da Coordenação Política. Nessa qualidade, nunca coordenou fosse o que fosse, já que toda a coordenação, do PT, do Governo, do próprio presidente, era feita pelo então superpoderoso ministro Chefe da Casa Civil José Dirceu, afastado na sequência da denúncia do imenso pacote de corrupção que alastra pelo Brasil.
De gabinete paredes meias com o do presidente Lula, Dirceu sempre desclassificou, desconsiderou e humilhou o ministro Aldo Rebelo, que se viu, de repente, demitido sob pressão do Partido dos Trabalhadores, de que Dirceu foi também presidente. Hoje, Aldo Rebelo é testemunha de defesa de Dirceu, num processo que este enfrenta de impugnação de mandato como deputado. Alguns dizem que Rebelo é conciliador. Outros afirmam que ele é mole.
Talvez seja ainda pior do que isso. Ao afirmar que "nenhuma CPI [Comissão Parlamentar de Inquérito] tem tanta eficácia na investigação como tem a própria Polícia Federal ou o Ministério Público", sabendo nós das ramificações, vindas a público com frequência, destas instituições com o mundo do crime, o novo presidente da Câmara dos Deputados oferece poucas garantias quanto ao andamento dos processos em curso nas três CPI´s, que estão apreciando a conduta dos deputados corruptos, processos que, em breve, lhe serão apresentados. É possível que esse déficit de garantias de eficácia, chamemos-lhe assim, que interessa a muita gente, tivesse sido um dos grandes motivos da sua eleição.
A vitória sem glória foi precocemente comemorada no Palácio do Planalto, sede do Governo presidencialista, e nalguns sectores da Câmara. Escolhido por Lula para ser um serviçal fiel e dedicado, ou não se justificaria o envolvimento pessoal e o investimento do presidente e do seu Governo, talvez Aldo Rebelo não consiga levar a bom termo o desempenho de correia de transmissão entre o Executivo e o Parlamento, para o qual estava guardado.
No dia seguinte à eleição, na Câmara não havia quorum para elaborar uma agenda de trabalho. Mais um dia ainda, e permanecia o vazio, tendo-se perdido a oportunidade de aprovar uma pequena reforma política, prevista para estancar nas próximas eleições, já em 2006, o surto de corrupção epidémica da classe política brasileira.
A oposição que rejeitou Aldo Rebelo não está disposta a colaborar nas estratégias instrumentalistas de Luís Inácio Lula da Silva. Pelo número de votos, está em boa posição para isso.
O presidente, habituado a querer, poder e mandar, cometeu, mais uma vez, um erro de cálculo e, mais uma vez também, perdeu a jogada.