quinta-feira, novembro 02, 2006




A actual crise política brasileira, nas suas causas, no seu desenvolvimento, nas suas possíveis consequências, justifica uma página a ela exclusivamente dedicada.
Ao guardar aqui todas as crónicas publicadas sobre o assunto no "Caderno de Viagens", suplemento do "Aparas de Escrita", pretende-se que o leitor possa acompanhar de forma mais linear o desenrolar dos acontecimentos.
A crise deixou de ser uma banal denúncia de corrupção na estatal Correios e Telégrafos, desencadeada por actos de um funcionário que exigia de empresários comissões (ou propinas, como se diz aqui), em troca de benefícios em licitações, o âmbito do sector que ele dirigia, para se transformar num dos maiores escândalos brasileiros, conhecido por mar de lama. O funcionário era apenas uma sardinha num mar de tubarões.
Não se sabe o que predomina, se a crise política, se a crise ética. Seja como for, ela já fez afundar número suficiente de figuras da Administração e de empresas públicas e privadas de reconhecida notoriedade na cena brasileira, criando e alimentando uma situação cada vez mais preocupante para o governo.
A procissão, que ainda vai no adro, aproxima-se perigosamente do palácio do Planalto, a sede do governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva.
Este, por sua vez, procura distanciar-se do Partido dos Trabalhadores (PT), partido que ajudou a criar e que constitui a sua principal base de apoio político e social.
Ao mesmo tempo, tenta proteger alguns dos mais chegados colaboradores, geralmente seus amigos íntimos, directa e inequivocamente implicados nas sucessivas revelações que todos os dias são presentes aos cidadãos pasmados.
Dois erros políticos, a meu ver. A defesa de corruptos e de corruptores e o afastamento do seu partido poderão torná-lo mais vulnerável a acções radicais da oposição, e talvez não só, quer no que diz respeito à continuação do actual mandato, quer no que toca a uma eventual recandidatura, se ela ainda for possível, no ano de 2006 que se aproxima.
Por outro lado, o populismo, via para a qual parece ter começado a derrapar, é uma táctica perigosa que já teve efeitos nefastos noutras épocas da história do Brasil. A de Getúlio Vargas, há pouco mais de 50 anos, foi uma delas.
Entretanto, o país corre o risco de começar a boiar à deriva. Se tal acontecer, não faltarão "salvadores de plantão" para o levar, a bem ou a mal, ao porto que, no seu querer, considerem, no momento, o mais seguro.
Por tudo isto, pois, parece não ser despropositada esta página dirigida em exclusividade à actual situação política brasileira.



"Terão de me engolir"


No dia 29 de Outubro os brasileiros votaram, de novo, nessa figura que, nos primeiros quatro anos, após ter dito que tudo seria diferente, tendo por bandeira a Ética, deixou que se roubasse o erário público até dizer basta (que não disse), roubos esses praticados por membros do seu governo presidencialista e do seu partido (PT – Partido dos Trabalhadores).
O último ano de governação foi um estourar de sucessivos e graves escândalos políticos e financeiros.
Além disso, 70% das empresas abertas no Brasil em 2004 fecharam no mesmo ano, segundo pesquisa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). As indústrias de calçado, vestuário, electrónica e brinquedos, para só mencionar algumas, entraram em ruptura, devido a uma política cambial que mantém o dólar americano artificialmente baixo, com todas as consequências nas exportações, e ao choque de produtos estrangeiros baratíssimos, principalmente da China. Em quatro anos o salário médio teve uma queda de 6,4%. O crescimento económico (2%) foi o mais baixo de toda a América Latina, e o penúltimo dos países emergentes (eufemismo para "subdesenvolvidos"). A agricultura e a agro-pecuária estão caóticas. O avião presidencial custou mais do que o investimento em saneamento básico (89% dos esgotos são despejados directamente nos rios sem tratamento). Enfim, na conjuntura salvam-se pouco mais do que as frases bombásticas triunfalistas do presidente, Luís Inácio Lula da Silva, e dos seus apaniguados.
Quanto aos escândalos de corrupção, o presidente Lula limita-se a dizer e repetir que só sabe que nada sabe.
Mesmo assim os votos reelegeram-no, distanciando-o do seu adversário tucano (nome que se dá aos integrantes do PSDB, Partido Social-Democrata Brasileiro) por cerca de 20 milhões de votos – curiosamente, ou, talvez, nem tanto, pensando bem, o número aproximado de analfabetos (incluindo os funcionais) e miseráveis (há-de fazer-se o cruzamento dos números destas duas categorias que deverá apontar para qualquer coisa como à volta de 30% da população actual do Brasil a caminho dos 200 milhões).
É verdade que não foi só o voto dos desfavorecidos que deu a vitória a Lula; funcionaram, por certo, apoios estratégicos clandestinos ou anónimos, a coberto do secretismo do voto; e o PSDB ajudou a construir a derrota do seu candidato que, no fim do primeiro turno, se apresentava com alta probabilidade de vir a ser o vencedor final: o candidato mostrou, inicialmente, alguma desorientação, parecendo não estar preparado para o arranque da campanha na segunda volta; o tom assertivo do candidato no primeiro debate televisivo não foi suficientemente trabalhado, e acabou por ser considerado agressividade pelos eleitores, que reagiram mal; alianças aceites pelo candidato com figuras ligadas à corrupção no Rio de Janeiro provocaram alguma perturbação, largamente difundida pela comunicação social, entre partidos e personalidades apoiantes, com reflexos negativos na opinião pública; o próprio PSDB mostrou em vários momentos da campanha falta de coesão, com especial relevância para declarações de algumas das suas figuras carismáticas, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (1994 – 2001), que contradiziam afirmações de campanha do candidato.
Mas, para além da relevância do "fogo amigo" e das amizades de ocasião, foi, de facto, na região pobre do Norte e na miserável do Nordeste que o peso das preferências por Lula se fez sentir, com uma diferença, respectivamente, de 31,18% e 54,26% de votos, isto, independentemente de ter suplantado o adversário em 20 dos 27 blocos da União (26 Estados e o Distrito Federal). Nos 7 Estados em que perdeu, mais a emigração, Lula ficou a menor distância do candidato do PSDB do que este nas suas perdas.
Ou seja: apesar de todos os "acidentes" de percurso dos primeiros quatro anos, Lula conseguiu arrecadar 60,83% dos votos, mais do que há quatro anos, quando se apresentou ao eleitorado como o candidato da mudança, da esperança num Brasil diferente. Um resultado que é um quebra-cabeças para a análise política, mas que pode ser esclarecido se se pensar no predomínio do voto emocional sobre o voto de opinião.
Afinal, aos beneficiários dos subsídios chamados "Bolsa Família" pouco importa que esta ajuda económica perpetue o desemprego e não conceda dignidade ao beneficiado; por outro lado, não se apercebem de que 49% desta ajuda são posteriormente retirados sob a forma de impostos. Onde a fome é permanente, 1 pão vale 1 voto, mesmo que o votado disponha para si de toda a padaria.
Lula, nas primeiras declarações após os resultados que o deram como reeleito, prometeu que a prioridade do seu governo será a qualidade de vida da camada pobre. Louvável; louvável e pragmático, já que foi aí que angariou grande número de votos que o elegeram.
Mas elevar os pobres à custa de quê e/ou de quem?
Se tentar fazê-lo segundo a perspectiva de um figurino ultrapassado, levianamente esquerdista, em que têm tido papel preponderantemente indicativo de um rumo as ocupações selvagens e destruidoras de propriedades produtivas privadas por parte do MST, Movimento dos Sem Terá, que Lula tem avalizado e, até, aplaudido, esquivando-se a pôr em marcha uma verdadeira reforma agrária (que, por oportunismo, os próprios MST não querem), o desenvolvimento brasileiro será trôpego e disforme, uma vez que a classe média, já tão flagelada e delapidada, tenderá a resvalar, cada vez mais e mais perigosamente, para a faixa da pobreza.
O Brasil só se tornará uma sociedade mais justa e integrada quando puder afirmar-se através de um desenvolvimento sustentado que proporcione maior riqueza para uma maior e melhor distribuição dos rendimentos, saltando do penúltimo lugar no ranking mundial nesta matéria (o último é a Serra Leoa).
Mas para que tal aconteça, necessário se torna estimular o investimento, aumentar a produção e criar postos de trabalho, o que não se consegue, de todo, com um crescimento económico de 2%. Menos de 5 ou 6% não permitirão ao Brasil criar emprego e dar o tal salto qualitativo que Lula da Silva tanto vem apregoando, até agora sem sucesso.
Salto qualitativo, ele, Lula, deu, duplicando o seu património registado nos primeiros quatro anos de mandato. Muitos dos seus colaboradores e correligionários, porventura menos avisados ou menos protegidos, ao tentar assegurar o futuro ficaram a contas com a Justiça. Outros safaram-se. Mas, se a Justiça não tiver cegueira selectiva, muito lixo vai sair de debaixo do tapete. O próprio Lula tem um processo a decorrer no Supremo Tribunal Eleitoral, por suspeita de envolvimento num processo de campanha de contornos menos transparentes.
Até 1 de Janeiro, início oficial do novo mandato, muita água vai correr sob as pontes. E talvez muitos votos torçam a orelha – sem sangue.