terça-feira, junho 28, 2005

A distribuição dos rendimentos no Brasil e outros desaforos


O Brasil tem 98.000 milionários, ou seja, 98 mil cidadãos com mais de um milhão de dólares investidos em acções, títulos, fundos e depósitos à vista e investimentos não declarados. A residência primária, mesmo que sumptuosa, não é considerada para esse cômputo.
A divulgação vem num estudo recentemente publicado pela Merrill Lynch, a maior corretora norte-americana e um dos maiores bancos de investimento do mundo.
Na América Latina o número de ricos cresceu 6,3%, tendo esse crescimento sido liderado pelo Brasil com um aumento de 7,1% em 2004.
Em 2003, primeiro ano do governo de Luís Inácio Lula da Silva, havia 92.000 milionários. Nesse ano registou-se um incremento de 6% de ricos em relação ao ano anterior.
De acordo com o citado estudo, as razões do crescimento das fortunas assentam, em parte, nas políticas fiscal e monetária.
Estará o Brasil mais rico, esse Brasil do povão, como aqui se diz? Estará o governo Lula da Silva de parabéns?
Decididamente não. As políticas económicas e financeiras beneficiaram – e continuam a beneficiar - apenas os ricos. As classes desfavorecidas mantêm-se desfavorecidas. Pior: estão cada vez mais desfavorecidas. De dia para dia aumenta o fosso entre os que têm mais do que tudo e aqueles que não têm nada de nada.
Segundo a agência britânica de notícias Reuters, referindo outro estudo, este publicado no dia 1 de Junho pelo Instituto de Pesquisa Económica Aplicada (IPEA), órgão ligado ao Ministério do Planejamento, a distribuição da renda no Brasil é a 2ª mais injusta do mundo, ganhando apenas para um apagado país dos confins da África chamado Serra Leoa.
Revela aquele Instituto que "1% dos brasileiros mais ricos detém uma renda equivalente aos ganhos dos 50% mais pobres".
Isso, porém, não impediu que o presidente da Câmara dos Deputados do Brasil, a 3ª figura de Estado, em Março deste ano, pouco depois da sua tomada de posse, tenha proposto um aumento de salário de 12 mil para 22 mil reais (83,33%) para os representantes do povo. O mesmo povo foi beneficiado em Maio seguinte com um aumento de salário mínimo de 260 para 300 reais (15,38%; 1 Real equivale, aproximadamente, a 0,33 Euros).
Num artigo do professor de Economia Ricardo Bergamini, lê-se que (...) "metade dos trabalhadores brasileiros ganha até 2 salários mínimos, e mais de metade da população ocupada não contribui para a Previdência. (...) A desigualdade de rendimentos no Brasil não apresentou sinais de melhora nos últimos 20 anos. A comparação entre a renda média familiar per capita das famílias que se encontram no último décimo da distribuição (as 10% mais ricas), que em 2001 era em torno de R$ 1.770,00, e as que se encontram nos quatro primeiros décimos da distribuição (as 40% mais pobres), que no mesmo período tiveram rendimento médio per capita de aproximadamente R$ 80,00, mostra que a renda dos primeiros é 22 vezes maior que a dos últimos. Essas relações sofreram poucas mudanças desde a década passada, indicando a permanência da desigualdade na distribuição de rendimentos" (...).
É verdade que o plenário não deixou passar a proposta de aumento dos deputados, tão escandalosa ela era. Mas o resultado prático poderá vir a ser o mesmo, senão maior, mercê de artifícios jurídicos, contabilísticos e administrativos do proponente e seu gabinete. E da falta de escrúpulos, claro.
Há pouco tempo, um jornal do Recife, capital do estado de Pernambuco donde é natural o presidente da Câmara dos Deputados, divulgava em manchete uma opinião desse político segundo a qual alguns crimes deveriam ser justiçados com pena de morte.
Não ocorrerá ao presidente dos deputados, 3ª figura da República, que grande parte dos crimes cometidos no Brasil deriva, precisamente, da má distribuição da renda? Não ocorrerá ao presidente dos deputados, 3ª figura da República, comparar a tipologia criminal do Brasil com a de países onde a distribuição de rendimentos é mais justa, mais equitativa? Não ocorrerá ao presidente dos deputados, 3ª figura da República, responsável pela condução dos trabalhos da assembleia de homens que é suposto representarem o povo que os elegeu, responsável pela condução dos trabalhos que visam elaborar as leis que é suposto melhorarem a vida de todos os cidadãos, a começar pelos menos beneficiados, não lhe ocorrerá que a sua missão é ajudar a governar e não governar-se, como descaradamente dá mostras públicas de querer fazer impunemente?
Se não lhe ocorre nada disto, francamente, num país com outras regras já teria deixado o lugar, quisesse ou não. Duvido mesmo que tivesse podido ser candidato ao lugar que ocupa.
No entanto, no país do Carnaval – literalmente e não só – tudo pode acontecer, até esta vergonhosa distribuição de renda que, afinal, de distribuição nada tem. É apropriação, uma apropriação, aliás, muito próxima da expropriação.



quarta-feira, junho 22, 2005

O pantanal da política à brasileira


No Brasil, a corrupção, o compadrio, o favoritismo e o proteccionismo familiar borbulham e fedem como num grande pântano de matérias em decomposição, e os mais destacados habitantes desse pântano são os políticos.
Por outro lado, a intrincada rede de relações pessoais e factuais que a prática política aqui engendra implica que uma ocorrência num qualquer ponto da teia desenrole um efeito de cascata transmissível a toda a estrutura.
É o caso da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Correios brasileiros, objecto de uma crónica publicada no "Eusou" em 27 de Maio deste ano, sob o título "Corrupção nos Correios brasileiros. Só aí?".
As acusações e respectivas defesas mal remendadas chovem agora num desesperado salve-se quem puder, trazendo à tona os podres do fundo do lago. E as cabeças começaram a rolar.
O escândalo aumenta. No mesmo grau, cresce a resistência do governo ao decurso normal e transparente do trabalho da comissão de inquérito, o que, para além de fazer cair em descrédito ainda maior a idoneidade e a ética da Administração Lula da Silva, conduz a confrontos directos entre este e a oposição. O país sai a perder.
Tudo começou com uma reportagem da revista "Veja", em meados de Maio último, na qual o ex-chefe do Departamento de Contratação e Administração de Material dos Correios é confrontado com uma gravação em que ele próprio, na sede da empresa estatal, negociava com três empresários o estabelecimento de comissões (aqui chamadas "propinas") como contrapartida de futuros favores a conceder pelos Correios. A gravação mostra a entrega, por parte dos empresários, de 3000 reais que seriam uma primeira parcela das comissões exigidas por aquele chefe de departamento. Perante a evidência, afirmou, então, haver um esquema de corrupção na empresa, esquema esse que teria o comando do presidente do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), um deputado pelo Rio de Janeiro.
Depois de muitas peripécias em que negou posteriormente o que afirmara, isentou quem acusara, deu explicações incredíveis, prometeu oferecer o dinheiro recebido a uma instituição de beneficência e levou os seus advogados a fazerem afirmações anedóticas, como a de uma cabala montada por uma não revelada multinacional e, depois, pela direita militar contra ele, a opereta terminou o primeiro acto com a sua indiciação pela Polícia Federal (PF) sob a acusação de fraude em licitação e corrupção passiva.
A partir daí, percebeu-se que a actuação do funcionário mais não era do que a ponta de um imenso iceberg que provocou um inesperado rombo no governo e foi abrindo uma perigosa brecha chamada crise política.
Perante o alvoroço criado à volta do caso, a Câmara dos Deputados e o Senado, mesmo, e bem, com a participação de elementos do partido no Poder (PT) e seus aliados, resolveram requerer a CPI em curso, perante o constrangimento e a tentativa de boicote do próprio governo que parece não se importar com o desgaste cada vez maior que produz na sua imagem já tão fragilizada.
Os ânimos estão exaltados. A oposição recrimina a direcção da CPI, governista, de sonegar informações que lhe são solicitadas e de tentar obstruir, por um processo de censura interna, o andamento dos trabalhos da comissão. A cúpula da CPI nega todas as acusações, como é óbvio.
Volta à ribalta o deputado do PTB, inicialmente acusado por aquele funcionário de ser a cabeça e o gestor do esquema. O governo reforça as acusações contra ele. Não lhe perdoa o protagonismo dos últimos dias como principal fonte de denúncias junto da opinião pública contra o PT e o governo.O deputado que, entretanto, deixou a presidência do PTB, acusa frontalmente o tesoureiro do PT de pagar uma mesada, a que a imprensa chama "mensalão", de 30 mil reais (1 Real vale, aproximadamente, 0,33 Euros) a vários deputados de partidos que constituem a base social de apoio do governo, para que se mantenham fiéis nas votações das propostas legislativas favoráveis à Administração do presidente Lula da Silva.
Perante isto, o próprio PT está dividido, de novo. A ala mais à esquerda quer a demissão do tesoureiro e do secretário-geral do partido, ambos supostamente envolvidos no "mensalão" como gestor e mentor, respectivamente, do plano. A maioria, porém, decidiu mantê-los em funções, o que se compreende: arredá-los significaria reconhecer o envolvimento directo e activo naquela imoralidade.
A oposição aproveita a ruptura, e pretende relacionar as nomeações políticas feitas para os Correios, e não só, por um então ministro Chefe da Casa Civil de Lula, com esta arrecadação levada a cabo na empresa estatal e que se destinaria, pois, ao PT e aos partidos aliados. Insinua que as nomeações foram mais que políticas, fazendo já parte da tramóia agora revelada. Exige que o ex-ministro seja chamado para depoimentos na comissão de inquérito, avançando ser ele o estratego daquele plano de arrecadação. Pede a cabeça do ex-ministro, a quem acusa de nunca ter sido ministro, mas apenas um foco de tensões e conflitos.
Quando o governo montou os primeiros entraves à criação da CPI, a oposição ameaçou, embora sem grande alarde, que se a CPI continuasse a ser dificultada, desenterraria dos arquivos perpétuos para que fora despachado o processo do assessor desse ex-Chefe da Casa Civil de Lula que extorquia comissões a um empresário de jogo.
Mas a oposição agora elevou o preço e fez mais do que isso. O ministro, grande amigo e homem de confiança do presidente Lula da Silva, foi afastado e substituído pela ministra das Minas e Energia.
O presidente viu-se ainda obrigado a proceder a uma reforma ministerial, que pretende seja não só qualitativa mas quantitativa também, mudando pessoas e reduzindo o número de ministérios, de secretarias-gerais e de cargos de confiança política. Para o executivo, a actual crise resulta, precisamente, das nomeações políticas.
Se isto serve, de alguma forma, de alívio para as consciências no Poder, não esconde, contudo, as verdadeiras causas da situação criada: a prática generalizada de corrupção a todos os níveis e em todos os sectores da vida nacional, com destaque exemplar para as altas figuras do Estado, a falta de espírito de serviço da classe política e a completa ausência de ética governativa. Mas disto não se fala nunca. É tabu.
Apesar da dimensão, este escândalo medonho não passa, ele próprio, por sua vez, da ponta de um outro iceberg ainda maior, que, tudo indica, começa agora a vir à superfície.
A ser assim, o melhor é mantermo-nos sentados e atentos, assistindo às cenas dos próximos capítulos da farsa "o próximo...".



quarta-feira, junho 08, 2005

Piscadela de olho, ou colete de salvação?


Em política nem tudo o que parece é, e há coisas que ontem não parecia virem a tornar-se no que hoje são. Portanto, não concordo com a afirmação frequente de que em política tudo o que parece é, e muito menos quando o que é pode parecer várias coisas, com tendência para convergirem num ponto, ou divergindo dele.
Por isso, as recentes declarações do Partido Comunista do Brasil (PC do B) devem ser apreciadas com algum cuidado crítico.
No manifesto aprovado em 3 de Junho, em Brasília, vem o PC do B, pela voz da sua comissão política nacional, distribuir generosos elogios à acção governativa do presidente Lula da Silva, avançando com algumas afirmações de cosmética, como as referentes à actuação face ao "caso Correios" (objecto da nossa crónica de 27 de Maio). Isto a pretexto da necessidade de "defender o governo Lula da ofensiva eleitoreira da oposição".
Gesto de solidariedade para com um partido ideologicamente consanguíneo? Mera cortesia?Independentemente do que possa estar a acontecer na cena política e nos seus bastidores, a verdade é que, fora dos pontuais cumprimentos protocolares, não há troca de simpatias entre partidos.
O objectivo e a missão de um partido político é a conquista do poder. Portanto, nesta perspectiva, todos os outros partidos, por mais próximos que estejam na origem da sua doutrina, são considerados como adversários a quem se impõe retirar eleitores e, de preferência, partidários.
Qual, então, o significado possível desta defesa de dama alheia?
O quadro deve ser visto à luz do horizonte 2006, já perto, onde se projectam todas as estratégias eleitorais. Em 2006 os brasileiros vão às urnas eleger presidente, senadores e deputados. E as mexidas de aquecimento para a corrida já começaram.
Pretenderá o PC do B uma aliança estável com o PT? Não me parece provável e muito menos viável. Ao fim de pouco tempo de casados, estariam a brigar por quem engoliria quem.
O manifesto explicita a imposição de (...) "recompor a base de apoio político, persistir na construção da maioria parlamentar com base na concepção de um governo de coalizão" (...). Desejará o PC do B alguns lugares na futura Administração, caso Lula/PT ganhe de novo? Mesmo que a hipótese dessa vitória não fosse neste momento bastante duvidosa, é impensável uma plataforma desse jeito. Lula/PT não tem lugares para distribuir, a menos que: a) os retire ao PMDB, o que seria um suicídio político; b) os retire ao PT, o que seria lançar mais lenha na fogueira das perturbações internas do seu partido.
Parece, pois, que nem de imediato nem a prazo o PC do B possa obter alguma vantagem palpável por parte do PT, através da feitura e divulgação deste manifesto. Mas pode, isso sim, estar a tentar recompor a face perante o eleitorado, particularmente do eleitorado que possa ser sensível e receptivo às propostas de esquerda.
Procurando lavar a imagem de descrédito que a acção governativa tem trazido para as ideologias mais à esquerda e respectivos partidos, está a emprestar ao outro um colete de salvação. Que o outro se salve para que ele possa salvar-se. A sua sobrevivência passa, em parte, pela sobrevivência do outro.
É assim que entendo a vinda a terreiro do PC do B. Porém, há aqui um risco a ter em conta: esta colagem ao PT poderá tornar-se no efeito do travão na derrapagem, isto é, quanto mais elogiar Lula/PT naquilo que a opinião pública condena, mais probabilidade terá o PC do B de se afundar com ele.
Há momentos na vida das pessoas e dos grupos em que o silêncio é mais valioso do que o melhor dos discursos.
Mas com certeza que tudo isto não deixou de ser já reflectido e pesado pelos responsáveis pela estratégia do PC do B.