quinta-feira, julho 28, 2005

"O Brasil não merece o que lhe está a acontecer"



"O Brasil não merece o que lhe está a acontecer" foram palavras proferidas pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva, em França, no último dia da visita a convite do presidente Jacques Chirac, por ocasião da festa nacional francesa, 14 de Julho.
Em boa verdade, está por decidir se ele tem autoridade moral para o dizer ou não.
A crise política que deflagrou no país após uma denúncia de corrupção na estatal Correios e Telégrafos continua a alimentar-se do
mar de lama que vai varrendo todos os dias pessoas e instituições.
No Partido dos Trabalhadores (PT), principal apoio social e político do presidente Lula, que foi seu fundador e presidente, e que é hoje o seu presidente de honra, a Direcção caiu por completo.
A Comissão Parlamentar Mista (senadores e deputados) de Inquérito (CPMI) criada para investigar o caso, conhecida por CPI dos Correios, deparou com um trabalho nunca esperado, quer pela quantidade de pessoas, factos e documentos envolvidos, quer pela condição desses mesmos intervenientes que, muitas vezes, dificulta o apuramento de conexões e responsabilidades.
Nem sempre as entidades solicitadas se mostram cooperantes com a Comissão.
É o caso do Banco Rural, a instituição donde se verificou a maioria dos saques de dinheiro cuja origem e destino se pretende apurar, que parece ter manipulado discos informáticos, sonegando informação sobre os movimentos verificados nas contas de uma das principais personagens do enredo: o empresário Marcos Valério.
A Polícia Federal (PF) foi, então, chamada a investigar o Banco. Vinte especialistas da PF analisam as contas do empresário, com a colaboração de Francisco Tomás Rego, ex-tesoureiro do Banco Rural.
Outras vezes, é no seio da própria CPI que se geram contratempos e embaraços.
Com frequência ocorrem vazamentos para a comunicação social de notícias e documentos considerados ainda confidenciais, cuja divulgação pode levar ao retraimento de testemunhas e à dissipação de pistas, para além de serem aproveitados como arma política deste ou daquele partido contra aqueloutro.
Já por duas vezes desapareceram papéis importantes, sem que se saiba que sumiço levaram. Sabe-se, sim, que alguns deles forneciam justificativos para os saques bancários efectuados pela mulher de um elemento do Partido dos Trabalhadores.
Para além dos atrasos que estes desaparecimentos causam às investigações, lançam a desconfiança entre os membros de um órgão, e no próprio órgão, que deveria ser a imagem impoluta da transparência, embora se saiba que transparência no Brasil é coisa difícil de encontrar.
A própria Justiça embarga esforços da Comissão.
Sílvio Pereira e Delúbio Soares, respectivamente ex-secretário-geral e ex-tesoureiro do PT, figuras chave em todo este processo, conseguiram, antes de serem ouvidos pelos membros da CPMI, que o Supremo Tribunal Federal lhes concedesse
habeas corpus preventivo. Com isto, ficaram protegidos de ser presos durante as declarações, podendo mentir descaradamente – o que fizeram – e negar-se a responder a questões cruciais – o que fizeram também.
Incompreensível, esta decisão judiciária, e, no estado em que as coisas se encontram, suspeita, até.
Depondo em dias diferentes, ambos se fizeram acompanhar do mesmo advogado, contratado pelo PT, um especialista em casos de grandes falcatruas, em particular desvios de dinheiros públicos. Sugestivo.
O ex-secretário-geral Sílvio Pereira não explicou por que razão recebeu um jipe
Land Rover, no valor de 73 mil reais (1 real vale, aproximadamente, 0,33 euros), de um empreiteiro que ganhou contratos milionários de obras com empresas estatais (GDK), e cujo principal cliente é a petrolífera brasileira Petrobrás.
Um dos contratos recentes celebrados entre a GDK e a Petrobrás, no valor de 19 milhões de reais, está agora a ser investigado por indícios fortes de sobrefacturação.
Pouco depois de ter estalado o escândalo dos Correios, o carro oferecido, com 45 mil quilómetros, foi posto à venda num concessionário que, ao saber da sua origem, o devolveu.
O ex-tesoureiro Delúbio Soares, procurando proteger outras figuras grandes do partido, quis convencer a Comissão de que era ele o único responsável pelo esquema pouco ortodoxo de arrecadação de dinheiros. Assumiu tudo, sozinho, o que veio a provar-se ser mais uma mentira sem vergonha. Não é de estranhar, num homem que prega publicamente que "transparência demais é burrice".
Em simultâneo, contrariou o depoimento que o seu colega Sílvio Pereira anteriormente prestara na mesma Comissão, afirmando que este tinha pleno conhecimento de uma caixa 2 para o financiamento de campanhas do PT e da base aliada, ou seja, fundos de origem "desconhecida" e, no mínimo, duvidosa. A esta caixa 2 chama Delúbio Soares, eufemisticamente,
empréstimos não contabilizados.
Passado pouco tempo, em 22 de Julho, Sílvio Pereira pediu a sua desvinculação do partido.
Mas nem só para financiamento de campanhas servia esse dinheiro, uma vez que já se provou existir o tão falado
mensalão, mesada de 30 mil reais, em média, com que o PT subornava parlamentares da oposição, para que eles votassem favoravelmente as propostas governamentais.
Na época de maior intensidade do
mensalão, entre Setembro de 2003 e Janeiro de 2004, 41 parlamentares trocaram de partido.
Além disso, há verbas oferecidas a outros grupos, como sejam a Associação dos Juízes Federais da 1ª Região, e a Frente Nacional dos Prefeitos (presidentes autárquicos em Portugal), que, em nota divulgada no próprio dia da revelação, não esclareceram de forma convincente o motivo de tais ofertas.
Foi já tornada pública uma lista, embora ainda não completa, em que constam 120 nomes de quem sacava dinheiros disponibilizados por este esquema.
O segundo maior sacador das contas do empresário Marcos Valério, referido no início, 6 milhões de reais no Banco Rural, é uma empresa com um sócio que possui uma
offshore [empresa de intermediação com impostos baixíssimos ou mesmo zero] no Uruguai, a ser investigada por remessa ilegal de dólares para o exterior.
Os 70 milhões de reais que, entre 2002 e 2004 saíram das contas do empresário beneficiaram partidos da base aliada e de outros quadrantes, grupos diversos, como os atrás citados de Juízes e de Prefeitos, e foram sacados por deputados, assessores, chefes de gabinete, funcionários e, até, familiares de políticos.
Um polícia que brevemente vai ser ouvido retirou da boca do caixa de um banco cerca de 5 milhões de reais.
Provavelmente, muitos dos sacadores seriam apenas
correios dos verdadeiros destinatários.
Marcos Valério é um empresário especialmente dedicado à publicidade, em particular publicidade de empresas estatais.
Amigo recente do ex-tesoureiro do PT, Delúbio Soares, era ele que conseguia empréstimos para este partido junto da banca, empréstimos garantidos pelos contratos de publicidade com aquelas empresas públicas. Segundo afirmou, foi o próprio Delúbio que lhe pediu para se constituir tomador dos empréstimos.
O ex-tesoureiro era homem de grande influência no aparelho do partido e do Estado, e não custa a crer que também os contratos de publicidade das empresas públicas passassem pelo seu aval. Foi assim que o PT arrecadou 50 milhões, 47 dos quais no Banco do Brasil (um banco do estado, mas que não é o banco central).
Para além disso, Marcos Valério efectuava depósitos de quantias definidas pelo então tesoureiro do partido, Delúbio, em contas de beneficiários que aquele designava.
Todo o dinheiro angariado, fosse qual fosse a origem, passava, assim, por uma lavagem prévia nas empresas de Marcos Valério.
Das 21 empresas que o empresário possui, algumas foram criadas para substituir outras com problemas fiscais (fuga aos impostos) e de segurança social (não pagamento à Previdência). Recentemente, a Justiça congelou-lhe 18 milhões de reais para pagamentos deste último tipo de dívidas.
Antes da tomada de posse do actual presidente, Lula da Silva, os bens de Marcos Valério estavam avaliados em pouco mais de 300 mil reais. No primeiro ano do governo de Lula passaram para 3,8 milhões. No ano seguinte, 2003, contabilizavam 6,7 milhões. Em 2004 chegavam aos 18 milhões.
Incapaz de justificar de forma inequívoca a origem dos seus bens, o empresário ensaia, então, várias manobras.
Nos depoimentos à CPI, com a televisão presente, chora a morte de um filho ocorrida há uma série de anos.
Afirma-se colaborador da CPI, mas, quando inquirido, ilude as questões, mente ou não responde, também ele protegido pela impunidade reconhecida por um
habeas corpus concedido pelo mesmo tribunal que facultara os de Sílvio Pereira e Delúbio Soares.
Dando a entender que se sente traído, ameaça contar tudo à Justiça. Concretiza, mas esse tudo parece ser nada de novo para o promotor que o ouviu.
Propõe-se, então, ajudar a CPMI, contra a anulação dos depoimentos que sua mulher e uma funcionária terão de fazer na comissão de inquérito. Recusado. Dirige a mesma proposta ao Ministério Público. Recusado também.
Para se defender das pressões a que as suas contas bancárias estão a ser sujeitas, procura sacar o mais que pode, mas a imprensa e o poder judiciário não o largam.
No intuito de aliviar a pressão da vigilância, vem a público dizer que não pensa fugir do país (quem falou nisso?) porque é um cidadão honesto, e, com dois braços para trabalhar, não se importa de ir vender bananas na rua.
Renilda de Souza, sua mulher, tenta levantar da própria conta num banco a gorda soma de 1,8 milhões. Em vão. A conta é congelada. Não só essa, porém. À ordem do procurador geral da república, todas as suas contas estão agora bloqueadas.
Em desespero, Marcos Valério vira-se para o PT e pede 200 milhões em troca do seu silêncio. Tal verba seria a que ele julga necessária e suficiente para começar uma nova vida no estrangeiro.
Para isso, propõe-se intermediar o encerramento do Banco Económico, processo obscuro que tramita há bastante tempo, e que poderá saldar-se num ganho de 1 bilhão para o seu proprietário. Os 200 milhões pedidos pelo empresário seriam a sua comissão de intermediação.
O partido vacila, empata tempo, dá a entender aos advogados de Marcos que pondera a proposta, e a acusação de chantagem cai na rua pela pena de jornalistas da
Veja, a revista que levantou o véu do escândalo com uma reportagem publicada em Maio.
Valério nega que tenha chantajado, e diz que vai pedir à Justiça o reembolso do que o PT lhe deve. Seria qualquer coisa como 40 milhões, se os números até agora divulgados forem fidedignos. As dívidas totais do PT estarão em 91 milhões (fora os juros), 50 dos quais à banca, como se disse atrás.
As aflições do empresário aumentam por não conseguir explicar a movimentação de 200 milhões nas suas empresas e de 30 milhões nas contas pessoais, em dois anos.
Entretanto, o Supremo Tribunal Federal abre inquérito para investigar todas as suas actividades empresariais.
Na terça-feira 26, sua mulher, Renilda, é ouvida na comissão de inquérito.
Acompanhada pelo mesmo advogado do marido, apresenta-se com um discurso bem ensaiado, e procura atirar poeira para os olhos dos deputados e senadores que a interrogam. A imagem de ingenuidade que quer fazer passar para os membros da Comissão é desmascarada, quer na própria Comissão, quer em entrevistas dadas pelos parlamentares.
Pretende mostrar distanciamento em relação às empresas de que, de resto, ela também é sócia, alegando que sempre preferiu dedicar-se à família do que aos negócios. Diz que só agora sabe da movimentação de milhões nas contas do marido. A sua memória selectiva mostra uma riqueza de pormenores ao referir alguns episódios distantes e complexos, em contraponto com o esquecimento de coisas comezinhas como o número do telefone celular (telemóvel, em Portugal) do marido.
Renilda não traz consigo um
habeas corpus, mas foi dispensada de assinar o compromisso habitual de dizer a verdade. Ridículo.
Então, para além de simular com brilhantismo, mente. E mente sem peias quando nega levantamentos de alguns milhares de reais. Confrontada com a cópia dos dois cheques, reconhece a sua assinatura.
Mas a questão não está em alguns milhares de reais. Foi provado que entre 2002 e 2005 movimentou 14 milhões em 4 bancos. Um deles é o Banco Rural, onde os saques são mais elevados.
Renilda oferece à Comissão e à imprensa um doce. Afirma que José Dirceu sabia de tudo.
Dirceu, actualmente deputado do PT, até há pouco tempo ministro Chefe da Casa Civil de Lula e amigo íntimo do presidente (amigo até há pouco tempo, também, pois agora, isolado, é raiva surda que manifesta contra Lula da Silva), foi apeado na sequência deste escândalo, a pretexto de um outro escândalo que envolveu um seu assessor, Waldimiro Diniz, que extorquia dinheiro a Carlinhos Cachoeira, um empresário de jogos electrónicos, ilegais no país.
Renilda relata, com o rigor da sua memória selectiva, datas e locais de encontro entre Dirceu, enquanto ministro, e altos responsáveis do Banco Rural e do banco BMG, ambos envolvidos, e muito, nos acontecimentos.
José Dirceu confirma imediatamente aos jornalistas que o interpelam o encontro com os banqueiros, mas nega que tal tivesse alguma coisa a ver com empréstimos.
Perante isto, o PT quer explicações de Dirceu, até porque Delúbio Soares, o ex-tesoureiro do PT, era o seu homem de confiança. Foi Dirceu que o elevou a tesoureiro do partido.
Se Dirceu sabia, seria pouco provável que Lula não soubesse. A aproximação entre os dois era grande. Os respectivos gabinetes ficavam lado a lado.
No próximo fim-de-semana Delúbio será ouvido na Comissão de Ética do PT. Militantes reclamam que o mesmo aconteça a José Dirceu, após a audiência na Comissão de Ética da Câmara dos Deputados.
Renilda termina um dos seus depoimentos dizendo que reza para que o marido não seja preso.
No dia seguinte é votado favoravelmente na CPMI um requerimento a enviar ao Procurador Geral da República, pedindo a prisão preventiva de Marcos Valério e o bloqueio de todos os seus bens, por supressão de provas.
Documentos semidestruídos, alguns pelo fogo, foram encontrados ocasionalmente, bem como um arsenal bélico militar, em casa de Marco Túlio Prata, um ex-polícia acusado de homicídio. O polícia é irmão de Marco Aurélio Prata, o contabilista (contador, no Brasil) de Marco Valério.
Para além disto, defendem alguns que a prisão preventiva poderia preservar a vida do arquivo reservado ambulante que é Marcos Valério.
Curiosidade: o Procurador Geral da República, António Fernando de Souza, diz que ainda não é a hora de prender Valério, por faltar fundamentação de provas consistentes.
Ouve-se dizer sem reservas que o presidente Lula sabia do
mensalão e de tudo o resto. E as evidências disso aumentam a cada dia.
O governador do estado de Goiás, Marconi Perilho, do Partido Social-Democrata Brasileiro (PSDB) declarou que já em Março de 2004 avisara o presidente Lula sobre o pagamento de mesadas a deputados da base aliada do Partido do Progresso (PP) e do Partido Liberal (PL).
Segundo revelação de um jornalista numa mesa redonda do programa Roda Viva da TV Cultura, transmitido na segunda-feira 25, um esquema semelhante, embora em escala reduzida, já funcionava em 1996 nas autarquias controladas pelo PT, com base em assessores. Seria, põe-se a hipótese, um balão de ensaio para o esquema alargado agora descoberto.
A ser assim, é mais uma prova de que Delúbio, o ex-tesoureiro do PT, não foi o responsável, ou, pelo menos, o mentor do esquema actual, pois naquela data ainda não era politicamente nascido.
Nessa época, um membro do PT teria denunciado ao presidente do partido o que estava a passar-se em determinado município. O resultado foi a demissão imediata dos cargos que ocupava. O presidente do partido era, então, Lula da Silva.
Lula, as poderosas cúpulas do Partido dos Trabalhadores e o não menos poderoso e cinzento José Dirceu estariam por dentro do que se passava, e, mais do que conhecedores coniventes, seriam avalizadores.
O sistema presidencialista constitucional, aos poucos foi resvalando para um parlamentarismo chefiado por José Dirceu, uma espécie de Richelieu do Palácio do Planalto (sede da Administração).
Nessa época amigo íntimo de Lula, deixou inimizades pelo caminho até ao seu afastamento por exigência dos oposicionistas, que reclamavam que nunca fora ministro, mas sim um gerador de divisões e controvérsias no governo. A sua exoneração foi uma cedência inevitável do presidente.
O caso, acima mencionado, de extorsão em que se meteu o seu assessor Waldimiro Diniz junto de um proprietário de uma rede de bingos originou uma outra CPI em que Dirceu vai ser ouvido, por certo. Mas a sua próxima audiência, marcada para breve, será na comissão de ética da Câmara dos Deputados.
Em entrevistas de rua, a população mostra-se atónita e aturdida. Afirma-se lesada. As eleições de 2002 que deram uma incontestável vitória a Lula mostraram o desejo inequívoco de mudança. Lula era a mudança, a diferença, o combate à corrupção na sociedade, em particular no aparelho do Estado. A corrupção foi a maior de que há memória.
Os militantes mais antigos do PT declaram-se envergonhados e constrangidos. Começaram já a abandonar o partido e têm encontro marcado para definir novos caminhos.
Sondagens mostram que desceu a percentagem de eleitores que considera Lula uma pessoa honesta e o seu governo uma Administração de bem. Muitos outros índices que traduzem a imagem do Executivo vêm piorando rapidamente.
Os parlamentares da CPMI falam em "eclipse moral do governo", e confessam abertamente que as investigações podem chegar a Lula da Silva.
Sindicatos fortes como o dos metalúrgicos contrapõem com o seu apoio incondicional e musculado, ameaçando, em grandes concentrações de associados, todo aquele que se atrever a tocar naquele que foi seu associado e presidente.
Tais medidas de intimidação não passam, por enquanto, disso mesmo, mas podem complicar mais a situação se começarem a ter alguma expressão real.
O
impeachment (julgamento do presidente pelo Congresso, plenário de senadores e deputados) tem sido mencionado sem reservas como uma possibilidade, o que não acontecia há 15 dias atrás.
Uma eventual aliança de quatro grandes partidos para garantir, em torno de pilares económicos e sociais, a chegada a bom termo do actual mandato, parece ter ficado sem efeito.
A oposição pretende a renúncia ou eleições antecipadas para Fevereiro de 2006, oito meses antes do legalmente previsto.
A última solução é a mais acarinhada, já que a primeira levaria o vice-presidente José Alencar (Partido Liberal – PL) ao poder, coisa que os oposicionistas não querem ver concretizada, em particular o PSDB e o PFL (Partido da Frente Liberal), ambos com profundas ligações ao empresariado. Eles temem que o vice possa tomar medidas populistas sem sustentação técnica, complicando mais a situação da economia do país.
Avelar, ele próprio um grande industrial, detentor da maior têxtil do Brasil, mostrou, publicamente e por diversas vezes, a sua discordância em relação à política económica do governo, designadamente quanto à taxa de juros em vigor.
Contra o
impeachment manifestou-se quinta-feira 28 Nelson Jobim, o Presidente do Supremo Tribunal Federal (o tribunal que tem concedido habeas corpus a alguns depoentes da CPI dos Correios), atemorizando com o espectro de um país ingovernável durante 10 anos (porquê 10 anos, 2,5 mandatos presidenciais?), caso Lula da Silva seja apeado. O recado colheu reacções de crítica azeda, quer por parte da imprensa, quer de alguma oposição.
Lula da Silva evita os jornalistas, mesmo para falar de actos de gestão corrente. Mas, em cerimónias públicas, vai dizendo com ar sério que "ainda está para nascer alguém capaz de discutir ética" com ele. Na tomada de posse do novo director-geral da Petrobrás (os petróleos do Brasil), declarou solenemente que conquistara "o direito de andar de cabeça erguida". O tempo se encarregará de o confirmar ou infirmar.
Para mostrar alguma iniciativa moralizadora, o presidente cortou 70% dos 20 mil cargos de confiança que existiam a nível nacional, substituindo-os, progressivamente, por funcionários de carreira.
No entanto, indiferentes a estas profissões de fé, os parlamentares da CPMI, mesmo os afectos ao governo, procuram descobrir os contornos do negócio para, segundo dizem, punir, tanto os corruptos, como os corruptores. Mas, para isso, é preciso descobri-los, em especial estes últimos, os doadores livres, ou forçados, das astronómicas verbas em jogo.
Na CPI fala-se em máquina de corrupção, lavagem de dinheiro e associação criminosa.
A juíza deputada federal pelo Rio de Janeiro Denise Frossard, do Partido Popular Socialista (PPS), dá uma explicação maquiavélica para o esquema. Segundo ela, todo o processo teria como objectivo a captura do Estado para uma perpetuação no poder. Através do suborno e outros métodos, o PT asseguraria a sua presença nos centros vitais dos três pilares da governação: legislativo, executivo e judicial. Assim, o país viveria numa ditadura a que a mudança periódica de nomes e o funcionamento aparentemente constitucional das instituições dariam a legitimidade (e a ilusão) de um regime democrático.



domingo, julho 10, 2005

Ainda a corrupção nos Correios brasileiros


As conclusões a que tem chegado a Comissão Parlamentar Mista (formada por senadores e deputados) de Inquérito às denúncias de corrupção nos Correios brasileiros (CPMI ou, mais vulgarmente, CPI dos Correios), retira propriedade a que se fale em corrupção apenas nessa empresa pública, tal é a dimensão do extravasamento dessa corrupção que se propaga pelo interior de partidos políticos, obriga à quebra de segredo profissional e de outros sigilos de abastados empresários e de influentes políticos, e demite destacadas figuras públicas das suas funções.
Um respeitado jornalista, âncora de uma conhecida cadeia de televisão, chama aos acontecimentos, prosaicamente, "chuva de lama" e "rio de lama".
O que deu origem a tamanho caudal de impurezas está relatado nas crónicas aqui publicadas em 27 de Maio e 22 de Junho passados, respectivamente. Sobre elas terei de fazer uma rectificação e uma confirmação.
A primeira tem a ver com um cálculo meu de que os ânimos se acalmariam depois das primeiras revelações, e que um qualquer acontecimento mundano, na ocasião sugeri que pudesse ser uma nova telenovela, faria desviar as atenções do cidadão comum, apesar de se tratar de um escândalo de avantajadas proporções. De tal modo estava eu convencido, que pensei não tornar a falar mais ao assunto, por ele, certamente, cair no esquecimento. Bem me enganei. À medida que os trabalhos da CPI progridem, mostram um enredo que faz parecer aprendiz o melhor roteirista de telenovelas do país da telenovela.
Quanto à confirmação, é a de que o funcionário dos Correios responsável pelo departamento de compras, flagrado a receber comissões, aqui chamadas "propinas", por uma câmara escondida, não era mais do que um simples peão no tabuleiro do jogo, um peixe miúdo, como costuma dizer-se. Dele é que nunca mais se falou.
De então para cá, o que sucedeu de relevante?
O secretário-geral e o tesoureiro do Partido dos Trabalhadores (PT), principal apoio organizado do presidente Lula da Silva e de seu governo, demitiram-se na semana passada dos respectivos cargos, conforme pretendia a linha mais à esquerda do partido, crítica feroz do governo, em particular no que toca ao projecto económico, e contrariamente ao que a maioria petista advogava. Os governistas sempre quiseram protegê-los contra tudo e contra todos. Principalmente contra as evidências. Esse foi um erro fatal para a imagem do partido.Saíram, negando qualquer conhecimento do que se passava no PT. Posição no mínimo estranha, dadas as funções privilegiadas que desempenhavam, a rede de relações que mantinham, a amplitude e a gravidade dos factos narrados, e a dimensão das verbas envolvidas.
Se essas demissões tivessem ocorrido há mais tempo, poderiam ter sido tomadas como um reconhecimento implícito da sua responsabilidade no processo, mas também poderiam ter sido explicadas à opinião pública como um acto de boa vontade para desimpedir o caminho a uma investigação profunda e objectiva. Restava o benefício da dúvida.
Agora não. Os dois parecem cada vez mais implicados e comprometidos no esquema do "mensalão", a verba paga pelo PT (30 mil reais por mês) a deputados da oposição para que estes votassem favoravelmente as propostas vantajosas ao governo. A Superintendência da Polícia Federal (PF), em São Paulo, fez questão de os ouvir. Embora interrogados isoladamente, ambos se fizeram acompanhar de um dos maiores criminalistas brasileiros, o mesmo que defendeu casos recentes de desvio de dinheiros públicos e de fuga de capitais para o estrangeiro, por parte de um ex-presidente de autarquia de uma das maiores cidades do país. Escândalo gordo que, pelo andar da carruagem, vai ficar em águas de bacalhau.
Os dinheiros movimentados serão de origem duvidosa. Segundo denúncias que se avolumam diariamente, poderão provir de fontes privadas e públicas.
Surge em cena, entretanto, uma figura cinzenta, próspero empresário, dono de uma empresa de publicidade e de mais 14 sociedades, algumas das quais, segundo afirmou, foram criadas para substituir outras que tinham problemas com a Receita Federal e com a Previdência. Há suspeita de que estas empresas fariam lavagem de dinheiro público para o PT.
Amigo pessoal e íntimo do tesoureiro deste partido, parece ter sido o operacional do "mensalão". Sem qualquer cargo político ou partidário, dispunha, no entanto, duma forte e estendida influência, a ponto de negociar com o governo a atribuição de cargos políticos.
Entre 1999 e 2005, o empresário terá movimentado em bancos, pelas suas empresas, 1,2 bilhões de reais (1 real vale, aproximadamente, 0,33 euros), dos quais 21 milhões sem justificativo aparente, e 500 milhões sem proveniência determinada. A quebra do sigilo bancário revelou que tais movimentos não se coadunam com o património existente.
O PT conseguiu empréstimos de alguns milhões junto de vários bancos brasileiros, um dos quais aquele por onde circulavam as verbas do "mensalão". O empresário aparece como negociador desses empréstimos. Em dois deles, respectivamente de 2,450 milhões e de 3 milhões de reais, foi mesmo avalista, tendo liquidado uma primeira prestação de 350 mil que o PT não honrou. No último empréstimo, o presidente do PT era o tomador, e o tesoureiro entrava como avalista também.
Após o pagamento daquela prestação, retirou o seu nome como fiador, segundo revela. No entanto, ninguém é capaz de indicar quem o substituiu junto da entidade bancária credora. Um dos bancos atingidos vem a terreiro dizer que todas as operações foram efectuadas de forma transparente e legal, mas, entretanto, exonerou dois vice-presidentes da área financeira.
Ouvido pela CPI dos Correios durante mais de uma dezena de horas, esta nebulosa personagem apresentou-se no plenário munido de um habeas corpus preventivo que o protegeria de prisão, caso o seu comportamento durante o interrogatório o justificasse. Medida suspeita, pois se quem não deve não teme, que cautelas motivaram o empresário?
Poderá parecer estranho a anuência do Supremo Tribunal Federal em tal concessão. Para um leigo, assemelha-se a um acto da Justiça a entravar a Justiça.
Com este documento na mão, o empresário limitou-se a negar tudo aquilo de que era acusado, e a não responder àquilo que poderia ser esclarecedor. Para abrilhantar a actuação, não se acanhou de chamar ao momento a morte de um filho, passada há muitos anos, por doença fatal, como se isso fosse relevante para o caso em apreço. E chorou, chorou comovidamente.
Aliás, o choro está a tornar-se uma constante nas emissões televisivas, por parte das figuras que vão sendo indiciadas neste processo.
Há dias foi a vez do presidente do PT que, sem mais nem quê, numa entrevista desatou a chorar, lembrando-se subitamente de como tinha sido torturado nos tempos da ditadura militar, ente 1964 e 1984. Nada a ver com o assunto em pauta, claro.
Anteontem pudémos assistir a uma sessão de choro por parte de uma deputada do PT, acusada pelo ex-motorista de ter recebido de São Paulo 200 mil reais para efeitos de compra de favores políticos. Este motorista defraudou-a em 400 reais por uso abusivo do seu cartão de crédito, mas ela não apresentou queixa. O silêncio dourado que agora se quebrou.
Diariamente se assiste a cenas que desafiam a imaginação, e se toma conhecimento de notícias insólitas.
Um secretário do PT no Ceará, assessor do irmão do presidente do partido, é apanhado no aeroporto de São Paulo com 200 mil reais numa mala, e 100 mil dólares americanos escondidos nas cuecas. Mente à polícia, dizendo que é agricultor e que o dinheiro provinha da venda de produtos agrícolas. Pretendia deslocar-se para Fortaleza, capital do Ceará. Encontra-se preso. Relação ou não com o caso Correios? O estado de desconfiança é tal, que na cabeça do homem da rua tudo se associa.
Descobriu-se que o empresário amigo do PT ludibriou a comissão de inquérito. Mercê do habeas corpus, não será preso como se esperaria; apenas se repetirá o interrogatório, provavelmente para continuar a iludir a verdade. Entretanto, contas bancárias suas no valor de 8,5 milhões de reais foram recentemente congeladas por ordem judicial para regularização de dívidas à Previdência.
A secretária do empresário fez declarações reveladoras na CPI, e foi por ele acusada de tentativa de extorsão.
Uma multidão de notáveis incrimina outra multidão de notáveis. Mas todos os notáveis são unânimes em afirmar que de nada sabiam. Ministros são apontados. Porém, continuam negando e permanecem tranquilamente no ministério. Tanto no PT como no Governo, todos concordam em que ignoravam por completo o que se estava desenrolando debaixo dos seus narizes.
Mas os factos vão desmentindo os desmentidos, e à medida que se puxam os fios da manta, mais ela se desmancha, deixando a descoberto muitos e alargados buracos.Os acontecimentos precipitam-se.
O secretário das comunicações do PT é substituído.
Numa reunião das cúpulas do partido em São Paulo, sábado 9, de manhã, o presidente do partido deixa o lugar, perante a concordância e o aplauso unânimes do directório. Ainda na noite anterior garantira à comunicação social que não renunciaria e que, ao contrário, prosseguiria na liderança do PT. Talvez as lágrimas oferecidas na tv, dias atrás, por razões despropositadas no contexto da entrevista, fossem uma antecipação sentida dos efeitos da resolução agora tomada – de moto próprio ou por imposição politico-partidária.
As demissões sucessivas que se têm verificado abrem uma nova frente na já difícil e conturbada situação governativa. É que algumas das personalidades escolhidas para recompor o topo fazem parte da equipa ministerial de Lula da Silva. Nem o partido o poupa.
O ministro da Controladoria Geral da União declara, finalmente, no mesmo sábado, à noite, que há corrupção nos Correios.
A crise política, que mais do que política é uma crise ética e de valores, numa sociedade que tem por lema "dinheiro fácil", já deu lugar a mais CPI´s, para além da dos Correios: a do Banestado, um caso antigo que dormia em águas mornas, de um banco com ligações a um outro dos que agora estão directamente envolvidos nos dinheiros do PT; o do "mensalão", que alberga, também, o inquérito à compra de votos supostamente realizada em 1997 para a emenda da reeleição presidencial, no tempo do anterior presidente, Fernando Henrique Cardoso; e o dos bingos, outro que estava congelado, e que diz respeito à extorsão de dinheiro a um empresário de jogo, por parte do adjunto do ex-ministro chefe da Casa Civil, recentemente demitido, amigo íntimo e braço direito do presidente Lula da Silva.
Por este andar, não haverá senadores nem deputados em número suficiente para integrar e fazer funcionar as comissões de inquérito constituídas, sem falar nas que ainda possam vir a ser criadas. Além disso, o país parou do ponto de vista legislativo.
A comunicação social, ainda que discretamente, fala em impeachment, pelo menos para afirmar que esse não deverá ser o caminho. Mas fala. Alguns analistas adiantam que a oposição optará, de preferência, pela sangria do presidente até o deixar incapaz de uma recandidatura. Lula é considerado já um presidente à mercê dessa oposição, como um rato distraído apanhado pelas unhas de um gatarrão astuto e sem pressas.
Parece aproximar-se o aniquilamento político para Lula da Silva.
Saberia o presidente de tudo o que estava a acontecer? Essa, uma razão plausível porque, inicialmente, obstaculizou a criação e o funcionamento da CPI dos Correios. Outra possível reside na tentativa, afinal falhada, de cobertura política para os seus homens de confiança e para o partido. E não pensemos em mais nenhuma.
Como se diz em Portugal, ainda agora a procissão vai no adro. Mas a verdade é que, pelos vistos, a cabeça de alguns santos já saltou do alto dos andores. À cautela, outros bem-aventurados apearam-se e puseram o altar à disposição.
O povo desiludido espera e aguenta.-Próximo!...