sexta-feira, agosto 26, 2005

A brecha no pilar pode tornar-se maior


Rogério Buratti, o advogado recentemente ouvido pela polícia civil e pelo Ministério Público acerca de mais um episódio de corrupção na política brasileira, (ver crónica Uma brecha no pilar), prestou depoimento ontem na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Bingos.
Esta comissão, criada recentemente, apareceu na sequência de um caso que estava congelado, mas que os recentes escândalos financeiros envolvendo políticos e partidos fizeram reanimar.
Conta-se com poucas palavras. Em 2002, Waldomiro Diniz, nessa altura presidente das Loterias do Estado do Rio de Janeiro (Loterj) e integrante da equipa da governadora do mesmo Estado, Benedita da Silva, do partido no poder, Partido dos Trabalhadores (PT), foi filmado secretamente quando pedia dinheiro para si e para a campanha eleitoral do actual presidente da república, Luís Inácio Lula da Silva, a um empresário de jogos não legalizados.
Após a eleição, Waldomiro entrou para o círculo da Administração Lula, na qualidade de assessor do Chefe da Casa Civil, o então ministro José Dirceu. Pouco depois a gravação foi divulgada e Waldomiro demitido.
Mais algum tempo decorrido, o próprio José Dirceu, apesar de amigo do presidente, teve de ser afastado, pois as denúncias que surgiram sobre grandes vigarices levadas a cabo pelo PT, ao qual ele pertence, e algumas das suas mais destacadas figuras, começaram a ser comprovadas. José Dirceu é acusado de envolvimento pleno em tudo isso.
Quando Waldomiro foi corrido do Palácio do Planalto, a sede do governo, a questão caiu no rol dos esquecidos, por acordos tácitos entre governistas e oposicionistas. A ética não ilumina a prática política brasileira.
Mas ao virem a público, em Maio passado, as primeiras notícias da existência de um extenso esquema de subornos na empresa estatal Correios e Telégrafos do Brasil, em que partidos da base de apoio ao governo, com o PT à cabeça, e, também, da oposição, estavam enterrados até ao pescoço, e ocorreram as primeiras movimentações para a criação de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para os Correios, os oposicionistas ameaçaram veladamente que se a comissão de inquérito fosse criada, desenterrariam o caso Waldomiro Diniz.A CPI dos Correios entrou em funções a todo o vapor, e logo passado pouco tempo surge a dos Bingos.
A comissão procura agora aprofundar uma investigação que ponha a nu toda a cumplicidade entre dinheiro do jogo, para mais, ilícito, campanha eleitoral e benefícios pessoais.
Não parece que seja uma obsessão pela legalidade e pela moralidade o que motiva a maioria de senadores e deputados nestes processos de averiguações. Salvo as honrosas excepções de bem intencionados, vinga a tentativa de aproveitamento político, pessoal ou partidário, cujos refreamentos para salvar as aparências são mantidos a custo e nem sempre alcançados.
Voltando ao depoimento que constitui o assunto desta crónica, Rogério Buratti desempenhou o cargo de secretário municipal em Ribeirão Preto, cidade do Estado de São Paulo, no tempo em que o actual ministro da Fazenda, António Palocci, era prefeito (presidente do município).
Nas declarações que prestou agora às autoridades enquanto esteve detido, revelou que a prefeitura recebia mensalmente 50 mil reais em comissões da principal empresa de colecta de lixos da cidade, Leão Leão, a grande e habitual ganhadora dos processos de licitação da prefeitura. Os dinheiros seriam canalizados para o PT, na pessoa do seu tesoureiro Delúbio Soares, hoje arredado de funções e suspenso por tempo indeterminado, devido aos apuramentos que têm sido feitos no que respeita à sua conduta, enquanto responsável pelas finanças do partido.
As declarações de Buratti deram origem a uma entrevista colectiva por parte do ministro Palocci que tudo desmentiu categoricamente.
Por isso, a sessão de ontem, aberta à comunicação social, criou bastantes expectativas.
Durante cinco horas e meia o advogado respondeu com serenidade às perguntas que o relator e os parlamentares lhe dirigiram. Tal qual fizera o ministro Palocci perante a imprensa no domingo passado. Durante cinco horas e meia o advogado passou para o exterior uma imagem de honestidade e transparência. Tal qual fizera o ministro Palocci perante a imprensa no domingo passado.
Antes de mais, as respostas que deu permitem agora rectificar ou aclarar algumas afirmações contidas na crónica citada no início.
A delação premiada, redução de pena em troca de revelações, que contribuiu para a libertação, foi sugerida por sua livre iniciativa durante os interrogatórios, não por imposição policial ou do ministério público.
A saída da secretaria municipal que ocupava, em 1993, deveu-se a um seu pedido de exoneração, e não a afastamento compulsivo por parte do prefeito, aquele que é hoje ministro da Fazenda, António Palocci.
Após a sua saída, não passou de imediato a integrar os quadros da Leão Leão, mas só no fim de quatro anos.
Os telefonemas recentes e confirmados entre ele e Palocci datam de 2003, com este já à frente do ministério da Fazenda.
Quanto ao resto, Rogério Buratti repetiu, agora às claras, todas as denúncias feitas à polícia civil e ao Ministério Público, ou seja, que no tempo em que Palocci era prefeito de Ribeirão Preto, corriam comissões de 50 mil reais por mês, pagas pelo grupo Leão Leão, responsável pela colecta de lixo na cidade. O dinheiro seria encaminhado para o PT de São Paulo, para a pessoa do tesoureiro de então, Delúbio Soares.
Enfim, poderá dizer-se que era, literalmente, dinheiro de lixo.
Buratti reiterou que seria quase impossível, para não dizer de todo impossível, que Palocci desconhecesse o esquema. Deixou entender que o prefeito sabia do que se passava, mas não queria interferir para não prejudicar o partido, com a consciência semi-tranquila de que esse dinheiro não o beneficiava directamente.
Será esta a lógica do presidente Lula da Silva, ao garantir, por interpostas pessoas, que de nada sabia do actual esquema de corrupção de âmbito nacional, consumado pelo seu partido?
Finalmente, Buratti reafirmou que os impérios do jogo de São Paulo e Rio de Janeiro contribuíram para a campanha do presidente Lula, em 2002. O primeiro, com um milhão de reais. O outro com quantia superior.
Tudo isto já fora divulgado anteriormente, pelo próprio Ministério Público. Não houve, portanto, nos depoimentos de ontem, o rebentamento de petardos que alguns supunham possível, e outros desejavam.
É verdade que Buratti não apresentou provas documentais do que disse. Em contrapartida, defende-se, sustentando que forneceu as pistas suficientes para que uma investigação cuidada e conduzida com perícia possa comprovar tudo o que declarou.
As opiniões dividem-se, consoante os interesses pessoais e políticos do momento, quanto ao efeito destas cinco horas e meia de exposição e perguntas e respostas.
Na Comissão, o advogado foi "acusado" de tratar muito bem Palocci, e de ser por este muito bem tratado. Dir-se-ia que há um acordo de cavalheiros entre os dois, para encobrimento mútuo ou, pelo menos, estabelecimento de limites àquilo que cada um diz. Parece que um e outro apresentam apenas metade dos factos.
Buratti faz eco do que Palocci dissera, dias atrás: já foram amigos, mas hoje não são, porque a amizade, segundo eles, pressupõe uma presença continuada, o que não acontece.
Independentemente da validade deste critério discutível, a verdade é que Buratti falou pelo menos 12 vezes, entre Janeiro e Agosto de 2003, para o telefone de Palocci no ministério. Indagado, responde que o tema da conversa era trivialidades, num caso, e a saúde de um amigo comum, no outro. Estranha frequência e temática para duas pessoas que dizem não ser amigas.
Rogério Buratti deveria ter deposto na quarta-feira passada, mas no dia anterior desapareceu sem deixar rasto. No fim da tarde, os seus assessores divulgaram a notícia de que estava doente. A CPI dos Bingos avisou que nomeariam uma junta médica para averiguar do tipo de doença. Na quarta-feira, Buratti tranquilizou a CPI com a confirmação da sua presença na quinta-feira, o que aconteceu.
Entre os parlamentares e a comunicação social, há quem suspeite, e investigue, que se terá realizado uma reunião na terça-feira, dia do desaparecimento de Buratti, entre este, com seus representantes, e um enviado, ou mais, de Palocci, a título de compor o cenário.
Especulação? Aguardemos. Tudo se há-de saber porque, como garante o presidente Lula da Silva, a verdade virá à tona da água.
Oxalá...
Quanto a Lula, e por falar nele, enquanto Buratti depunha na CPI dos Bingos, discursava no Conselho Nacional para o Desenvolvimento Económico e Social, parecendo querer colher para si o protagonismo do dia e empalidecer as declarações de Buratti.
Comparando-se com vários presidentes, assegurou que não faria como Getúlio Vargas, que acabou cometendo suicídio, nem como Jânio Quadros, que não chegou ao fim do mandato por renúncia, nem, tampouco, como João Goulart, afastado do poder por um golpe militar.
A situação actual exigiria mais cautela do presidente nas afirmações que faz com tal veemência.
E termina as comparações recordando Juscelino Kubitschek de Oliveira, com quem faz questão de ser identificado, dizendo que terá paciência, paciência e mais paciência.
O presidente parece não estar a entender que quem vai perdendo a paciência é a nação.
E parece não entender, também, que a paciência começou a esgotar-se na economia do país. Que o digam os resultados espelhados nas cotações de moeda e no desempenho das Bolsas de Valores. Que o digam os índices de desemprego que não descolaram, apesar de, nesta época, ser habitual uma oferta maior de postos de trabalho, com vista a um eventual aumento de consumo do Natal e do fim de ano. Que o digam os valores respeitantes ao investimento, retraído e medroso.
Lula, ora diz que a economia está de perfeita saúde, ora alerta para a sua vulnerabilidade, de acordo com uma estratégia de quem aparenta não ter estratégia alguma.
O caso Palocci e as suas consequências, num ou noutro sentido, podem abrir ainda mais a brecha deste importante pilar que é a economia. Mas, convenhamos, constituem apenas um dos vectores capazes de influenciar o seu comportamento, esteja ela forte ou fragilizada. Outro parâmetro, bem mais importante, mede a confiança do país e no país, quanto à prática do governo e das instituições, uma prática que se pretende com objectivo social, decidida, honesta e transparente. E essa prática, neste momento, está sobejamente comprometida.