sexta-feira, novembro 04, 2005

As surras


Quando reparei que a minha casa estava a ser vigiada por meia dúzia de sujeitinhos de músculos colossais e cabeça atarracada, com aspecto entre mafioso e arruaceiro, subi ao sótão, cego de fúria, a fúria assassina de quem defende a família e a propriedade.
Regressei armado de uma fisga, de quando era garoto, uma moca que arranjara numa feira de artesanato, sem saber para quê – há coisas que compramos sem saber porquê e vêm a ter utilidade – e uma espécie de bacamarte de boca de sino que pertencera a meu bisavô materno, e com o qual ele espantara o meu avô nas primeiras aproximações que ele fizera à minha avó.
Entreguei a fisga ao meu filho mais novo, com um bom suprimento de pedras do quintal, o porrete à minha filha adolescente, com recomendação de que não olhasse aos estragos quando batesse. Minha mulher ficou com o bacamarte e todos os pregos e parafusos ferrugentos que encontrei na arrecadação das traseiras, munição adequada para aquele tipo de arma.
Guardei para mim a estratégia de comando da defesa.
Passado algum tempo, por uma nesga de cortina de uma das janelas da sala vi os energúmenos avançarem com artilharia pesada. Vinham montados em vacas que escorriam baba de febre aftosa. O da frente formou o salto em direcção à porta envidraçada.
Acordei a arfar do pesadelo, alagado em suor.
Depois de ter esgotado com sofreguidão um jarro de água, dei por mim a pensar na razão que assistia à recente expressão pública de raiva por parte de três parlamentares brasileiros. Chama-se a isto empatia.
A senadora Heloísa Helena, do PSOL (Partido do Socialismo e Liberdade, formado a partir de dissidentes do partido no poder, o Partido dos Trabalhadores), o senador Arthur Virgílio, do PSDB (Partido Social Democrata Brasileiro), e o deputado Magalhães Neto, do PFL (Partido da Frente Liberal), todos da oposição, dizem-se vítimas de escutas telefónicas e de investigações na área das suas residências.
Parece haver provas de que a ABIN (Agência Brasileira de Inteligência, serviços secretos) estaria envolvida nisso. A ABIN, naturalmente, nega, mas, pelo sim pelo não, e para acalmar os ânimos exaltados, foi prometido abrir um inquérito de apuramento de responsabilidades – e que, provavelmente, como hábito que é, nada apurará, a não ser a inocência da tal ABIN.
No entanto, mais do que as escutas que, de resto, já atingem cinco parlamentares, dois deles integrantes da direcção de uma comissão oficial que investiga alguns dos recém descobertos escândalos de corrupção no Brasil, aqueles três políticos queixam-se, em especial, de ameaças a membros de suas respectivas famílias, nomeadamente filhos, e de interrogatórios feitos na vizinhança sobre as crianças.
Aparentemente sem qualquer espécie de combinação entre si, os três decidiram que dariam "uma surra no presidente da República", Luís Inácio Lula da Silva, se algo acontecesse a familiar seu, e declararam isso publicamente, das tribunas do Senado e da Câmara dos Deputados, frente às lentes e aos microfones das televisões. Tal e qual. Uma surra no presidente da República.
Fizeram-no com um tom de discurso e um ímpeto de quem não estava brincando. E o senador Arthur Virgílio, por maioria de razões, campeão e cinturão negro de
jiu-jitsu, sabia do que falava.
Quem possa achar que o presidente Lula da Silva está permanentemente protegido por seguranças, desengane-se. Não faltariam oportunidades de o presidente se encontrar cara a cara com os parlamentares, e poder levar deles, se não uma surra, pelo menos, alguns bons tabefes.
Mas, taponas à parte, admitindo mesmo que as ameaças não se concretizem e sejam explicadas como metáforas, e deseja-se que não passe disso, a bem, e só por isso, da civilização, o ardor e a seriedade com que foram feitas revela duas coisas.
A primeira, independentemente da elegância ou deselegância desse comportamento, é que a intenção no momento do discurso seria mesmo surrar o presidente, alvo de uma cólera comum, por certo, a muitos outros brasileiros. E não só dos 53 milhões que votaram nele, e agora se sentem enganados.
Ao longo destes três anos de mandato, Lula conseguiu conquistar inimizades e, até, ódios, mesmo entre correligionários seus, com uma perícia insuspeitada. Lula já é só o presidente de alguns brasileiros. Apenas o mantém no lugar a inoportunidade política, neste momento, de o fazer cair.
A segunda inferência é a de que as ameaças públicas de surra dos parlamentares ao Presidente da República mostram que o respeito a Lula deixou de existir. Não foram, porém, os parlamentares que usurparam o direito de Luís Inácio Lula da Silva ser respeitado. Foi ele próprio, não só como presidente, mas também como pessoa, que alienou esse direito.
Mais uma vez se deve lembrar que o respeito que um povo tributa ao seu Chefe de Estado não é definido por decreto. Antes, e principalmente, depende dos actos praticados e não praticados, patrocinados e não patrocinados, e permitidos e não permitidos por esse Chefe de Estado, no interesse exclusivo da sociedade que representa, governa e jurou defender através do cumprimento da Constituição.
No que toca ao presidente Lula da Silva, os actos provados e indiciados, os factos e as evidências, à sua volta, do seu Governo, do seu partido e da classe política em geral, têm vindo a falar por si desde o início deste ano.
É por isso que uma surra no presidente, mesmo só na intenção, revela sem equívocos o descrédito político e moral a que chegou. Ele e o seu Governo.