sexta-feira, setembro 16, 2005

Cassadores e cassado


Para a Câmara de Deputados do Brasil, o dia 14, quarta-feira passada, não foi de júbilo, e muito menos de glória. Pelo contrário.
O sufrágio que resultou na cassação (perda de mandato e de direitos políticos até 2015) do deputado federal Roberto Jefferson firmou-se mais no desejo mesquinho de uma vingança política, do que na vontade nobre de fazer justiça.
Em Maio deste ano, a revista brasileira Veja publicava uma reportagem com factos comprometedores para um funcionário da empresa estatal Correios e Telégrafos do Brasil, filmado a receber comissões (propinas) de empresários que pretendiam favores em licitações para fornecimento de produtos e serviços.
Maurício Marinho, o funcionário em questão, tentou defender-se, declarando que havia um esquema organizado de corrupção nos Correios, que teria como cabecilha Roberto Jefferson.
O deputado, que na época presidia ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), partido que tinha representantes seus em órgãos de decisão daquela empresa, veio de imediato a público com declarações escaldantes.
Então, enquanto Marinho dizia e se desdizia em renovadas versões nos interrogatórios da Polícia Federal (PF), acabando por inocentar Jefferson, este passou a presidência do PTB a um correligionário, e iniciou um rol de denúncias sobre corrupção de políticos, em que ele próprio, como líder do seu partido, estava implicado.
Daí para cá, a República ainda não deixou de tremer. A comunicação social está de plantão permanente. A imprensa no estrangeiro passa a imagem de uma classe política podre em todos os patamares, roubando quanto pode, generalização que anda pouco longe da verdade.
Roberto Jefferson, advogado de 52 anos, na política activa desde 1983, foi deputado federal pelo Rio de Janeiro até ontem. Nos últimos cinco meses tornou-se um homem a abater, com atiradores entre os governistas, tanto quanto entre a oposição.
As suas declarações fizeram rolar cabeças de políticos e empresários, numa degola em série que ainda não terminou. Assassinatos considerados crimes comuns são agora revistos como crimes políticos. Para além de subornos e outras formas de corrupção, rolou extorsão, desvio de fundos públicos, lavagem de dinheiro, fuga de divisas e evasão fiscal, num montante de vários bilhões de reais (1 real equivale a cerca de 0,33 euros). Alguns bancos se viram, de repente, descobertos nas movimentações ilegais. Empresas estrangeiras, algumas portuguesas, ficaram na berlinda. Na sequência disso, ministros e chefes de gabinete foram afastados e estão na fila para investigações pela PF e pelo Supremo Tribunal Federal. A terceira figura do Estado, o presidente da Câmara dos Deputados, caiu redondo, tido como corrupto também, gerando uma situação delicada e complexa quanto à substituição. A imagem do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, foi negativamente afectada, apresentando índices de impopularidade que tornam difícil a reeleição em 2006. A cúpula do partido no poder, Partido dos Trabalhadores (PT), fundado por Lula da Silva, pulverizou-se, com todos os seus elementos incriminados nos escândalos, e no interior do partido travam-se agora lutas de morte pelo poder.
O principal visado nesta embrulhada é, precisamente, o PT, que desempenhou, em simultâneo, o papel de corruptor e corrupto. Por um lado, pagava a deputados da base aliada e da oposição para que votassem favoravelmente as propostas da bancada do governo. Por outro, recebia dinheiro de empresas, públicas e privadas, que eram favorecidas em negócios vários, por tráfico de influência que o próprio PT desenvolvia.
Com Jefferson foram indiciados mais dezassete deputados de partidos vários, acusados de suborno. Dizem os entendidos que este número é muito inferior ao que poderá vir a ser ainda apurado, se as investigações prosseguirem com intenção de descobrir, avaliar e punir.
Até agora, a maioria dos envolvidos é do PT, partido que, na oposição, arvorava a bandeira da ética como arma eleitoral.
Iguais a ratazanas tentando salvar-se do naufrágio, alguns parlamentares estão a renunciar aos mandatos, antes de serem julgados. Forma covarde de escaparem à cassação que os afastaria da política por 8 anos. Assim, poderão candidatar-se, de novo, para o ano, e continuar a defraudar o país. A Lei o permite. Como se essa renúncia não constituísse declaração expressa de culpa.
Uma das acusações feitas a Jefferson no Conselho de Ética da Câmara é a de que ele acusara e nada provara. Argumento desonesto. Todas as denúncias, feitas na ocasião sem provas, estão a ser confirmadas, à medida que as investigações avançam, e abrindo caminho, todos os dias, para factos que até agora não tinham sido divulgados.
Outra das acusações prende-se com terminologias, significados de palavras, detalhes que não inocentam dos crimes praticados, mas de que a acusação se serve para dizer que as denúncias de Jefferson são infundadas. Assim se procura esconder as verdadeiras razões da cassação do deputado.
Roberto Jefferson não será, talvez, um santo. Porém, teve o mérito e a coragem de denunciar este imenso mar de lama que inunda o país. Não renunciou, e teve muito tempo para o fazer. Não se colocou a salvo dos escândalos, e reconheceu o seu partido como um dos beneficiados pelo dinheiro sujo. Não teve medo de afrontar os senhores do Poder, até às mais altas instâncias.
Ao mostrar aos seus concidadãos e ao exterior a verdadeira face dos políticos do Brasil, ao mostrar aos seus concidadãos e ao exterior a verdadeira face do Partido dos Trabalhadores, ao mostrar aos seus concidadãos e ao exterior a verdadeira face da corrupção no Brasil, Roberto Jefferson teria de ser abatido.
A sua cassação foi vendetta, não foi justiça. O Partido dos Trabalhadores, considerado de esquerda, e os mais que conservadores Partido Progressista (PP) e Partido Liberal (PL), curiosamente aliados do primeiro na base de apoio ao presidente Lula da Silva, uniram-se, mais uma vez, agora como carrascos.
Numa Câmara de 513 deputados, estiveram presentes 469. Destes, votaram a favor da cassação 313, e 156 contra. Embora a votação tenha sido secreta, pode-se tirar dos resultados algumas conclusões interessantes.
Assim, o PTB tem 45 elementos. No pressuposto, que pode ser falso mas é plausível, de que todos tenham votado contra a cassação, mesmo assim ainda houve mais 111 deputados que seguiram a mesma linha. PT, PP e PL somam 192 parlamentares. Presume-se que todos tenham votado a favor. Se assim foi, os restantes votos nesse sentido constituem apenas pouco mais de um quarto do total desses votos a favor. Isto significa que muita gente fora do PTB está com Roberto Jefferson.
Há um movimento, com apoio do poder judiciário, para adiar o julgamento pelo Conselho de Ética da Câmara dos outros parlamentares já indicados para cassação. Isto poderá indiciar uma tentativa de anulação dessas acções. Roberto Jefferson seria, então, o único cassado.
Se tal acontecer, aí está o mega-escândalo que faltava para definitivamente atribuir total descrédito àquilo que chamei numa crónica anterior de política à brasileira, se é que algum crédito ainda lhe merece a opinião pública nacional e internacional.