sábado, setembro 03, 2005

Não há fumo sem fogo


O velho ditado português "não há fumo sem fogo", recorda-nos que um indício é um caminho possível para uma evidência. Se ela será revelada ou não, isso já é outra faceta do problema, e depende de muitas circunstâncias, uma das quais é a tenacidade daqueles que procuram, acima de tudo, a verdade, contra as manobras daqueles outros que, para ocultar pecado próprio, cultivam deliberadamente a mentira.
Nos últimos três meses, o Brasil tem vivido de negações. Nega-se que se fez e que não se fez. Nega-se que se esteve e que não se esteve. Nega-se que se foi e que não se foi. Nega-se que se disse e que não se disse. Se necessário for, com o mesmo à-vontade e a mesma desenvoltura se nega a própria existência.
Nos últimos três meses o Brasil tem vivido na mentira, da mentira e para a mentira, que são formas distintas mas complementares da mesma ocultação da verdade.
A prova mais evidente disso reside nos sinais que todos os dias nos são facultados, sob a forma de desmentidos de afirmações, desmentidos de desmentidos, e desmentidos de coisas que ainda não foram afirmadas nem desmentidas.
A quem observe esses sinais com uma disposição tanto quanto possível desapaixonada é dado começar a antever conclusões interessantes. Esses pequenos cacos de informação tornam possível ir montando a peça que, assim, vai crescendo e tomando forma, e cada vez mais se assemelha a um avantajado pote de Ali-Babá que alguns querem tornar invisível. Ora vejamos.
Primeiro exemplo. Delúbio Soares, ex-tesoureiro do Partido dos Trabalhadores (PT), o partido no poder, José Genoíno, ex-presidente do mesmo partido, Duda Mendonça, publicitário que durante anos tem trabalhado para as campanhas deste partido, e Marcos Valério, empresário de publicidade de cujas contas saíram as astronómicas verbas, já lavadas e enxutas, destinadas a alimentar os escândalos político-financeiros patrocinados por este partido, quatro figuras totalmente envolvidas nos referidos escândalos, foram indiciados pela Polícia Federal (PF), acusados de lavagem de dinheiro, evasão de divisas e sonegação fiscal.
No dia seguinte, a PF volta atrás e passa o caso para a decisão do Supremo Tribunal Federal.
Segundo exemplo. Severino Cavalcanti, o presidente da Câmara dos Deputados, tem defendido, de forma mais aberta ou mais dissimulada, que os deputados contra os quais há provas de corrupção no exercício dos respectivos mandatos devem ser despenalizados ou sofrer penas brandas.
Isto deu origem a um terramoto, dentro e fora da Câmara, com ameaças de destituição do cargo, comentários extremados de desabono por parte de um número significativo de políticos, movimentos de desagravo da dignidade dos parlamentares, e vaias de homens ligados ao mundo dos negócios.
O presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, tem defendido a punição de todos os culpados no esquema de corrupção, e afirmado "cortar na própria carne" se necessário for.
Entretanto, homenageia Severino Cavalcanti, condecorando-o com a Ordem do Rio Branco, "destinada a galardoar os que, por qualquer motivo ou benemerência, se tenham tornado merecedores do reconhecimento do governo, servindo para estimular a prática de acções e feitos dignos de honrosa menção, bem como para distinguir serviços meritórios e virtudes cívicas".
Terceiro exemplo. O mesmo Severino veio ontem a público defender-se de uma acusação que ainda não lhe foi feita, mas à qual ele quer antecipar-se desde já: a de que teria recebido comissões (propinas), da ordem dos 10 mil reais por mês, para favorecimento em licitações do dono de um dos restaurantes que servem a Câmara. Aguardemos o aparecimento da acusação e do respectivo acusador.
Quarto exemplo. Após as denúncias sobre o PT, que têm sido confirmadas, de obtenção ilegal de dinheiros públicos e privados para financiar campanhas eleitorais e comprar deputados de outros partidos, o presidente, José Genoíno, foi afastado. Perante a grave crise interna do partido, o presidente da República trocou o país pela acção partidária, e retirou o seu ministro Tarso Genro (PT) da chefia do ministério da Educação, onde decorrem importantes reformas do ensino universitário, colocando-o como presidente interino do PT.
Aproximam-se eleições no Partido dos Trabalhadores, e Tarso Genro foi considerado candidato natural. Acontece, porém, que da lista (aqui chamada chapa) para a direcção, faz parte José Dirceu, ex-ministro Chefe da Casa Civil de Lula, afastado na sequência dos escândalos que estão a ser averiguados, e outros mais antigos que começaram a sê-lo agora. Tarso Genro avisou de imediato que não queria Dirceu, uma eminência parda, na sua lista, e deu-lhe um prazo para ponderar a saída. Dirceu, que neste momento é objecto de um processo de cassação, suspensão dos direitos políticos por oito anos, negou retirar-se.
Saiu tarso, e Lula da Silva deixou-o cair. Agora, nem no ministério, nem no partido. Prova cabal que, mesmo afastado do governo e, aparentemente, sem acção no partido, Dirceu tem muita força. E muita cobertura também. E, talvez, ainda, muito a encobrir.
Quinto exemplo. Alguns dos Bancos envolvidos em toda esta tramóia vieram a terreiro defender que as operações financeiras da crista da corrupção foram efectuadas dentro dos preceitos da Lei. À cautela, demitiram directores financeiros, um director responsável pelas campanhas de publicidade, fecharam o crédito a partidos políticos, e ameaçam o PT de exigir o pagamento da dívida de alguns milhões por via judicial, envolvendo na queixa o empresário lavador de dinheiro Marcos Valério e o ex-presidente do PT, José Genoíno, que assinava de cruz, ambos avalistas dos empréstimos.
Sexto exemplo. Perante uma acusação de gastos elevados no Palácio do Planalto, a sede do governo, pagos com cartão de crédito, justificados através de facturas falsas, (aqui denominadas notas frias), a Casa Civil apressou-se a desmentir, dizendo que todo o material de escritório facturado fora entregue.
Poucos dias depois, a mesma Casa Civil é obrigada a reconhecer a existência de, pelo menos, 24 notas frias, entre 2000 e 2004, totalizando, até agora, 11 mil reais (um real vale, aproximadamente, 0,33 euros), passadas por uma empresa que está em situação fiscal irregular desde 2002.
Resumindo, houve notas fiscais falsas, escrituradas por uma empresa na ilegalidade, para justificar despesas da Administração Lula da Silva que não puderam ser justificadas legalmente, ou, pelo menos, com legitimidade. O sistema de cartões de crédito no Palácio do Planalto tinha sido adoptado para dar mais transparência aos gastos do governo, gastos que estão agora a ser analisados pelo Tribunal de Contas da União.
Sétimo exemplo. O advogado Rogério Buratti, secretário municipal em Ribeirão Preto, cidade do Estado de São Paulo, no tempo em que o presidente do município (que aqui tem a designação de prefeito) era o actual ministro da Fazenda, António Palocci, do PT, revelou recentemente que a prefeitura recebia 50 mil reais por mês em comissões da principal empresa de colecta de lixos da cidade, Leão Leão, a grande e habitual ganhadora dos processos de licitação da autarquia.
Os dinheiros seriam canalizados para o PT, na pessoa do seu tesoureiro Delúbio Soares, hoje arredado de funções e suspenso por tempo indeterminado, devido aos apuramentos que têm sido feitos no que respeita à sua conduta, enquanto responsável pelas finanças do Partido dos Trabalhadores.
O ministro da Fazenda, dois dias depois, em conferência de imprensa (entrevista colectiva) desmente tudo, mas poupa de forma ostensivamente protectora o advogado.
Buratti é chamado a depor numa das três Comissões Parlamentares de Inquérito a funcionar actualmente, e reafirma tudo o que dissera antes, mas retribui a gentileza, poupando, também, o ministro Palocci. Amor com amor se paga.
Durante as inquirições dos membros da Comissão, Rogério Buratti refere o nome de Juscelino Dourado, chefe de gabinete do ministro Palocci, de tal forma que leva a supor alguma influência do advogado na agenda do ministério. Dourado fez parte da equipa de Palocci em Ribeirão Preto, e aí conviveu com Buratti, e com ele teve uma sociedade. Ele São amigos há 15 anos. Buratti é seu padrinho de casamento.
A Comissão de Inquérito decide ouvir Juscelino Dourado. O depoimento é longo. O depoente procura ser fiel ao seu actual patrão, Palocci, e ao seu amigo de longa data, Buratti. Confrontado com perguntas incisivas de alguns parlamentares, hesita entre um e outro, quanto àquele que será mais verdadeiro nas afirmações, o que não passa despercebido à Comissão.
Em determinado passo, vem a propósito referir o contrato feito entre a Gtech, empresa americana multinacional que controla o processamento das loterias, e a Caixa Económica Federal, detentora do jogo. O contrato foi francamente ruinoso para esta instituição. A Caixa depende do ministério da Fazenda, de Palocci, portanto.
Há a denúncia de que a Gtech terá oferecido à Caixa uma comissão, que poderia variar entre alguns milhares e alguns milhões de reais, para ver aprovado o contrato em determinadas condições. A proposta teria sido levada a Palocci e por ele rejeitada. Mas o contrato foi aprovado. A Comissão pretende, então, saber se o relatório de que consta o contrato e as condições chegou ao conhecimento de Palocci, para apreciação e decisão, uma vez que a Caixa depende do ministério da Fazenda. Dourado não se lembra. Os parlamentares insistem. Procurando disfarçar uma ligeira irritação, o chefe de gabinete de Palocci repete que não se recorda, mas compromete-se a fazer diligências para averiguar se tal documento entrou ou não no ministério, e a dar conhecimento disso aos inquiridores.
Aparentemente todo o depoimento correu bem, apesar de longo, sem fugas às perguntas, com a tranquilidade de quem está perfeitamente seguro no que diz.
No dia seguinte, Juscelino Dourado pede a demissão de funções de chefe de gabinete do ministro, o que é imediatamente aceite. Prescinde, assim, de um salário de 11 mil reais, apesar dos inúmeros compromissos financeiros que tem para com a banca durante um número apreciável de anos (automóvel, aquisição de terreno, construção de casa de 300 m2), conforme divulgou durante as declarações. Ao mesmo tempo, os parlamentares vão ficar sem saber se a negociata entre a Gtech e a Caixa Económica Federal foi, ou não, avalizada pelo ministro da Fazenda. Providencial.
Oitavo exemplo. Em Janeiro de 2002, ano de eleições presidenciais, Celso Daniel, do PT, presidente da autarquia de Santo André, cidade do Estado de São Paulo, é assassinado. A polícia conclui por crime comum, sequestro seguido de homicídio. O Ministério Público não concorda com esta versão, e defende que o sucedido foi um crime político, mas o caso é encerrado, com alguns intervenientes presos. Um destes, pouco tempo depois, é morto à facada na cadeia, em circunstâncias estranhas, por um grupo de encapuzados que se supõe não serem internos do presídio.
De então para cá, mais seis pessoas relacionadas com o caso foram assassinadas.
Três anos depois, por pressão da família, em particular do seu irmão, o médico oftalmologista João Francisco Daniel, o processo é reaberto, e a polícia concorda agora com a versão do Ministério Público, e subscreve a tese de crime político. Enquanto as investigações prosseguem, as revelações vêm em cascata.
Segundo a opinião de um perito criminologista, Celso Daniel foi torturado, assassinado e, depois de morto, baleado várias vezes.
O advogado que, por parte do PT, acompanhou o processo, é contra a reabertura do inquérito, alegando que nada de novo haveria para descobrir. José Dirceu, na época presidente do PT, é, entretanto, acusado de, nessa ocasião, ter impedido a investigação por parte do Ministério Público.
João Francisco Daniel afirma que haveria em Santo André um esquema montado pelo PT para arrecadação ilegal de verbas destinadas à campanha do candidato Luís Inácio Lula da Silva. Segundo o irmão do prefeito, este possuiria um espesso caderno com nomes de pessoas e empresas envolvidas. A obtenção desse caderno por parte de alguns visados terá estado na origem da tortura e do assassinato.
Um dos detidos acusados de terem participado na chacina revelou agora que o crime foi encomendado por um milhão de reais.
Poucos dias depois do funeral, João Francisco Daniel foi visitado por um tal Gilberto Carvalho, que lhe terá declarado, perante testemunhas, que Celso sabia do esquema de recolha de dinheiro, ao qual se opunha frontalmente, tentando desmantelá-lo. Ele mesmo, Gilberto Carvalho, recebia o dinheiro, o transportava para São Paulo, e o entregava ao presidente do PT, José Dirceu.
Gilberto Carvalho é hoje o chefe de gabinete do presidente Luís Inácio Lula da Silva.
Na verdade, não há fumo sem fogo, e com a fumaça que por aqui paira, densa e suja, o fogo deve ser grande e andar a queimar material muito inflamável. Não parece haver extintores nem bombeiros disponíveis para tamanhas proporções. É deixar arder. Resta a esperança de que seja um fogo purificador.