sexta-feira, setembro 02, 2005

Severino, o Brando. Luís, o Agradecido.


Severino Cavalcanti, o presidente da Câmara dos Deputados do Brasil, terceira individualidade na escala hierárquica da República, comporta-se como quem não tem medo de escorregar em velocidade vertiginosa pela tábua encebada do Poder. Talvez tenha as suas razões.
De longa carreira política, deputado do Partido Progressista (PP), partido que integra a base aliada do presidente da República, Luís Inácio Lula da Silva, este pernambucano de 74 anos sempre se tem orientado pelas ideologias conservadoras.
Por isso, a sua eleição, no início deste ano, para presidente da Câmara num governo dominado pelo Partido dos Trabalhadores (PT), o partido do governo, que tinha o seu candidato, foi considerada pelos observadores locais como uma derrota política do presidente Lula, facilitada pelo voto secreto que proporcionou uma fuga às alianças estabelecidas.
No entanto, mais do que o voto numa figura, em particular na figura de Severino, esta eleição constituiu para a Administração Lula da Silva um sinal do desagrado da base aliada, perante a forma como o Poder estaria a ser distribuído. Tanto assim que, alguns meses depois, Lula se viu obrigado a substituir, sem razão aparente, o ministro das Cidades, do seu próprio partido, por um técnico "sugerido" por Severino. Criou-se, assim, mais uma relação ambígua de "facturas a pagar", entre Legislativo e Executivo.
Pouco depois da eleição, o primeiro acto político de Severino foi a proposta escabrosa de aumento de salário dos deputados em cerca de 83%. Talvez, até agora, a sua maior e mais relevante iniciativa na Câmara, a proposta acabou rejeitada por uma maioria de parlamentares ainda com um mínimo de vergonha na cara.
Esta proposta e as eventuais pressões para a substituição, acima referida, do ministro das Cidades por alguém que, embora não sendo filiado no PP, tem com o partido relações estreitas mostram a finura política deste cidadão que coordena os trabalhos do órgão legislativo brasileiro.
Sem estatura nem prestígio de homem de Estado, na opinião de muitos, cada vez com maior frequência tem vindo a ser acusado de se valer do cargo que ocupa para angariar lugares políticos e empregos estatais para familiares. O seu gabinete integra seis pessoas de sua família, fazendo jus a uma declaração que proferiu numa solenidade, em que, com grande clareza e ainda maior desaforo, defendeu a inclusão em cargos públicos de parentes sem concurso prévio.
Permanentemente a tropeçar nas ideias e nas palavras, Severino foi recentemente vaiado por mais de 1000 empresários, durante um almoço em que se atreveu a tentar pôr alguma água na fervura do caldeirão dos escândalos político-financeiros que assolam o país, e que deram origem à expressão banalizada mar de lama.
Este incidente mostra em que ponto de efervescência se encontra a sociedade brasileira, mesmo a tradicionalmente mais serena, perante o desdobrar do esquema de corrupção, da responsabilidade do partido no poder, PT, com capilaridades extensivas a outros partidos e a empresas públicas e privadas, nacionais e estrangeiras, arrastando para o centro da tempestade homens da política e do mundo dos negócios.
Mas Severino não se deu por achado nem aprendeu a lição. Só que, desta vez, ergue-se dentro da própria Câmara o alarido contra ele, e não é pequeno.
Os seus pares já vão dando mostras de estar a perder o respeito que, pelo menos de modo formal, mantinham, e afirmam publicamente que Severino é um homem impreparado para o cargo que ocupa. As declarações que sem pudor profere perante variadas assistências comprometem a própria base aliada, a que o seu partido pertence. E há quem grite em pleno plenário que se cale, que deixe de falar em público, senão será constituído um movimento para o derrubar.
A gota de água que fez transbordar o copo foi uma entrevista recente ao jornal "Folha de São Paulo", em que preconizou a despenalização, ou a aplicação de penas brandas, para os deputados envolvidos no comprovado esquema de subornos que visava obter votos favoráveis para as propostas do partido do governo. Esta posição já ele vinha sustentando há algum tempo, e, embora de forma velada, estava a causar algum constrangimento entre os deputados.
É verdade que o seu partido, o PP, Partido Progressista, também foi beneficiado por aquele esquema, mas, e até por isso, seria de esperar uma postura mais idónea da parte do presidente da Câmara.
As reacções estouraram e transbordaram da Casa.
Acusado na tribuna de pretender fazer uma operação abafa para impedir deputados protegidos de sofrerem cassação, perda de mandato e de direitos políticos por oito anos, foi ele próprio ameaçado de cassação. O deputado Fernando Gabeira, do Rio de Janeiro, do Partido dos Verdes, afirmou que "a sua presença na presidência da Câmara é um desastre para o país". O deputado por Pernambuco Roberto Freire, presidente nacional do Partido Popular Socialista (PPS), declarou à imprensa que "as Comissões Parlamentares de Inquérito (CPI´s) não podem estar na mão de um irresponsável como Severino Cavalcanti".
Fora da Câmara as movimentações contra Severino também se fazem sentir. Duas das três CPI´s em funcionamento apresentaram um relatório conjunto para cassação dos 18 deputados, os apurados até agora, que se deixaram subornar. Isto com o beneplácito do presidente do Senado, Renan Calheiros, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), do Estado de Alagoas. O senador Jorge Bornhausen, do Estado de Santa Catarina, presidente do Partido da Frente Liberal (PFL), disse à imprensa que Severino está "sem condições de ser presidente da Câmara".
Na última quarta-feira foi lançada a Frente Pró-Congresso, movimento iniciado por 60 deputados de vários partidos, que pretende, através de acções levadas a efeito por todo o país, dignificar a função e resgatar a imagem de honestidade e transparência que deve ser bandeira da Câmara.
Com tantas e tão pesadas manifestações de desagrado, como irá comportar-se Severino? Tudo dependerá dos apoios que tem, ocultos e explícitos, e do bom senso que ainda lhe reste, ou aos seus conselheiros, para ponderar a gravidade da situação que não admite jogos de esconde-esconde.
Entretanto, o presidente Luís Inácio Lula da Silva agraciou-o ontem, dia 1º de Setembro, com a Ordem do Rio Branco, "destinada a galardoar os que, por qualquer motivo ou benemerência, se tenham tornado merecedores do reconhecimento do governo, servindo para estimular a prática de acções e feitos dignos de honrosa menção, bem como para distinguir serviços meritórios e virtudes cívicas".
Palmas para ambos.