quinta-feira, setembro 15, 2005

O sucessor


Bem vistas as coisas, Severino Cavalcanti não é culpado de que a eleição do presidente da Câmara dos Deputados do Brasil tenha recaído sobre alguém que não sabe alinhar duas palavras faladas, e muito menos escritas.
Bem vistas as coisas, Severino Cavalcanti não é culpado de que a eleição do presidente da Câmara dos Deputados do Brasil tenha recaído sobre alguém que, apesar de mal saber falar e escrever, mente com o desaforo e o desassombro próprio dos grandes trapaceiros.
Bem vistas as coisas, Severino Cavalcanti não é culpado de que a eleição do presidente da Câmara dos Deputados do Brasil tenha recaído sobre alguém que corre atrás de dinheiro como macaco atrás de banana, mas sem olhar para o caminho.
Bem vistas as coisas, Severino Cavalcanti não é culpado de que a eleição do presidente da Câmara dos Deputados do Brasil tenha recaído sobre alguém cujo primeiro e único notável acto na Casa tenha sido a proposta, recusada pelos seus pares, de aumento de salário dos deputados em 83%, xingando o povo.
Bem vistas as coisas, Severino Cavalcanti não é culpado de que a eleição do presidente da Câmara dos Deputados do Brasil tenha recaído sobre alguém que defende e pratica a inclusão de amigos e familiares na política por tráfico de influências.
Bem vistas as coisas, Severino Cavalcanti não é culpado de que a eleição do presidente da Câmara dos Deputados do Brasil tenha recaído sobre alguém que defende e pratica a inclusão de familiares em empregos estatais, sem concurso público, alegando que é um serviço prestado ao país.
Bem vistas as coisas, Severino Cavalcanti não é culpado de que a eleição do presidente da Câmara dos Deputados do Brasil tenha recaído sobre alguém que veio a ser acusado de passar cheques sem fundo.
Bem vistas as coisas, Severino Cavalcanti não é culpado de que a eleição do presidente da Câmara dos Deputados do Brasil tenha recaído sobre alguém que provocou insultos de deputados e senadores, ao sugerir indulgência e penas suaves para os políticos implicados no monstruoso esquema de corrupção que inunda o país num mar de lama.
Bem vistas as coisas, Severino Cavalcanti não é culpado de que a eleição do presidente da Câmara dos Deputados do Brasil tenha recaído sobre alguém que acabou sendo corrido, quase à pedrada, da presidência da Mesa pelos seus pares, perante a acusação indefensável de ter extorquido dinheiro, quando ocupava o cargo de primeiro secretário da mesma Câmara, anos atrás, ao empresário que explora um dos restaurantes da Casa, para preferência na exploração do espaço.
Enfim, Severino Cavalcanti não é culpado de que a eleição do presidente da Câmara dos Deputados do Brasil tenha recaído sobre a sua própria pessoa.
A culpa está com quem o elegeu, a coberto de uma estratégia que acabou furada.
Com o objectivo de fazer frente ao candidato do partido no poder, Partido dos trabalhadores (PT), rotulado de esquerda, a oposição indicou Severino, deputado do conservador Partido Progressista (PP), no qual parte do próprio PT veio a votar também.
Pouco depois de eleito, o mesmo Severino estava a comer na mão do presidente Luís Inácio Lula da Silva, fundador do PT.
Sublime ironia da cena. Sublime ingenuidade da oposição. Sublime esperteza do presidente Lula. Sublime safadeza do PT. Sublime oportunismo de Severino.
E é a quem o elegeu que se deve a culpa, também, da tremenda confusão que vai naquela Câmara para arranjar um sucessor.
Severino, apesar de todos os estertores, golpes de cintura, desmentidos e indignações, caiu agora redondo na poça de lama que criou há anos atrás. Na queda, sujou a condecoração da Ordem do Rio Branco que poucos dias antes, sem qualquer justificação plausível, o presidente Lula lhe conferira publicamente, e que teve como resultado a repulsa, expressa também publicamente, por parte de diplomatas envergonhados de partilharem a mesma comenda.
Teria Severino previsto tal desfecho para a sua carreira de mais de 40 anos? Quando propôs brandura para os deputados corruptos, estaria já a salvaguardar as próprias costas?
Com a Câmara completamente arrasada na imagem e no funcionamento pelos escândalos político-financeiros que estão ainda a ser investigados, vai ser difícil para os mais de 500 parlamentares chegarem a um consenso sobre quem dentre eles estará em condições de representar a Casa, e orientar os seus trabalhos com a dignidade que o cargo exige.
Terá de ser alguém que reúna em simultâneo um conjunto de qualidades como honestidade, isenção, independência, conhecimento, experiência, e capacidade de mediação, negociação e liderança.
Há, com certeza, pessoas portadoras destes requisitos. O embaraço reside em encontrar uma figura que agrade a todas as forças em presença.
A reivindicação feita pelo PT, segundo a qual o partido com maior bancada, o próprio PT, teria direito a sugerir um nome, ainda que regulamentar é, neste momento, por demais absurda para ser levada em conta.
Afinal, ninguém se esquece que o PT é o centro de todo este ciclone, a origem de todo este mega-escândalo que levou o país à pior crise política dos últimos 20 anos. Até agora, foi este partido o que forneceu o maior número de implicados nos subornos, na colecta ilegal para financiamento de campanhas, na evasão de divisas, na lavagem de dinheiro. Muitos dos infractores estão ainda em fase de averiguações e depoimentos. As penas não foram estabelecidas, e muito menos aplicadas. O partido está desmembrado, com debandada de militantes e lutas internas pelo poder.
Em tal estado de coisas, o PT não pode ter a veleidade de sugerir seja o que for, com um mínimo de credibilidade e aceitação.
Na sua maior parte, os partidos estão contaminados pela imoralidade e pela vergonha, logo, sem condições de oferecer um candidato.
A base aliada é um desastre de corrupção, o mesmo acontecendo com alguns dos partidos oposicionistas. Qualquer candidato daí proveniente, por mais honesto que seja, suscitará suspeição e reservas.
Os pequenos partidos não têm força suficiente para, por si sós, polarizarem a unanimidade em torno de alguém. É pena. O PPS, por exemplo, Partido Popular Socialista, teria um bom nome para consideração, Denise Frossard.
A deputada é conhecida em todo o Brasil como um exemplo de coragem e dignidade. A sua experiência como juíza criminal leva ao público a imagem da defesa da legalidade, da legitimidade e da ética.
Alguém avançou a ideia de que seria interessante, por muitos motivos, ter uma mulher como presidente na Câmara dos Deputados. Ela reúne as condições. Outras haverá, por certo, mas Denise tem mostrado, através do protagonismo político, uma personalidade adequada ao exercício do cargo.
Até à decisão, o vice-presidente, deputado José Tomaz Nonô, do Partido da Frente Liberal (PFL), dará para segurar as pontas. Por quanto tempo e para quem, essa a grande incógnita – e a grande complicação.
Mas, bem vistas as coisas, Severino Cavalcanti não tem culpa disso.