segunda-feira, setembro 19, 2005

Justiça, ética e bom-senso


Desde a mais tenra idade, o ser humano desenvolve um apurado sentido de justiça e reclama a parte que lhe cabe na distribuição. Porém, à medida que cresce, verifica, com pesar, que nem sempre a letra da Lei consegue traduzir o seu espírito, e que, pior ainda, muitas vezes a aplicação da Lei desvirtua por completo, quer a letra, quer o espírito.
Aprende, também, que não pode, ou não deve, fazer justiça por suas próprias mãos, delegando essa execução em órgãos competentes para o efeito, constituídos por concidadãos seus, para isso preparados e a isso dedicados.
Aprende, por fim, que a esses órgãos se chama tribunais, e a essas pessoas juízes.
A pouco e pouco, acostuma-se a ver os tribunais como templos da Justiça, onde o profano é sacralizado através da revelação da verdade, e onde a descoberta dessa mesma verdade permite executar acções pedagógicas, preventivas e rectificadoras de comportamentos, junto dos pleiteantes e da sociedade.
Por outro lado, acostuma-se, também, a ver nos juízes os sacerdotes dessa consagração, e, como tal, figuras imaculadas, impolutas, incensuráveis.
É assim nas sociedades ditas primitivas ou tradicionais. É assim nas sociedades desenvolvidas. No meio termo, terá de ser assim nas sociedades sub-desenvolvidas, ou em vias de desenvolvimento, como se diz agora, termo que nem sempre corresponde à realidade, pois o desenvolvimento pode estar estagnado.
O Brasil ocupa o 59º lugar entre 133 países, no que toca à prática da corrupção. Mas, melhor do que esta classificatória, o indicador medido pela organização Transparência Internacional (TI) nos dá uma ideia mais rigorosa, e deprimente, do posicionamento do país. Numa escala de 0 a 10, sendo este último valor o correspondente ao mínimo de corrupção, o país apresenta o preocupante índice 3,9.
A TI considera que um factor igual ou abaixo de 3 traduz a impossibilidade de controlar a corrupção no país. Como os dados se referem a 2004, seria importante actualizá-los à data de hoje.
Em tal contexto social, verifica-se, com tristeza, que a imagem dos juízes nem sempre confere com a excelência que o nosso imaginário foi educado a atribuir-lhes. De facto, não são poucos os juízes que, pelas suas safadezas, estão presos ou a contas com a Justiça. Outros, embora não menos safados, vão conseguindo esgueirar-se pelas malhas da Lei, como cobras de água.
A todo o juiz, sem excepção, se pede cuidado com o que pensa, especial cuidado com o que diz, e supremo cuidado com o que faz. Mas, quanto mais exposto for o lugar que ocupa na escala hierárquica da magistratura, maior terá de ser a atenção que presta às mensagens que transmite e aos comportamentos que assume, principalmente em público. Ou seja, a preservação da imagem deve ser uma das suas preocupações.
Quando se fala de presidentes de tribunais, a responsabilidade nessa preservação é acrescida.
No particular momento que o Brasil vive, inundado pelo mar de lama que os escândalos político-financeiros alimentam, é necessário redobrar a consciência da verticalidade e da integridade, qualidades que se resguardam pelo exercício permanente da auto-vigilância e da auto-disciplina. Mas nem sempre isso acontece.
A revista Veja, a mesma que tem dado a conhecer aos brasileiros a corrupção desenfreada que contamina grande parte dos seus políticos, a mesma que tem mostrado a cara dos que envergonham o Brasil perante si próprio e perante a comunidade internacional, trouxe a público, no fim-de-semana, o envolvimento do presidente do Supremo Tribunal de Justiça, ministro Edson Vidigal, em situações menos convenientes à sua situação.
Segundo a revista, a Polícia Federal (PF) captou, ao longo de dois anos de investigação, conversas telefónicas entre membros de uma das maiores quadrilhas de fraudadores da Previdência do país. Nelas, o nome de Vidigal é referido por diversas vezes, como sendo o homem com que o bando pretendia contar para resolver contratempos surgidos no decorrer de uma das maiores operações do género que estava a ser executada.
O juiz nega qualquer cumplicidade. Vamos acreditar, mas não devemos escusar-nos de reflectir sobre a familiaridade com que o seu nome é tratado no grupo, e na inutilidade de os bandidos invocarem o seu nome de graça, se sentissem que seria em vão. A obscurecer a cena, apresenta-se o facto de um apartamento, pertença de três enteados do juiz, ter sido por eles alugado ao chefe da quadrilha.
Num segundo episódio, relata a Veja que o mesmo juiz Edson Vidigal se deslocou recentemente ao Chile, a fim de participar num seminário sobre coberturas de saúde. Todas as despesas teriam sido pagas por uma empresa brasileira, gestora de planos de saúde. Na semana anterior, o juiz decidira a favor das empresas de seguros de saúde do Brasil o aumento de mais de 26% sobre os prémios a pagar pelos associados, situação que se encontrava em tribunal, contestada pelas organizações de defesa dos consumidores.
Numa extensa nota de indignação/justificação/repúdio, Edson Vidigal afirma que desconhecia os patrocinadores. Declara que pagou tudo do seu bolso. E exige respeito. O respeito, porém, e isto é válido para qualquer cidadão, não se exige – merece-se, ou não.
Vamos acreditar, de novo. Mas não há dúvida de que, por mais verdadeira que seja a sua exposição, já pouca gente acredita nas indignações, nas justificações e nos repúdios expressos pelos homens públicos sujeitos a denúncias pela imprensa. É que, na generalidade, se confirmam os factos divulgados, como toda a gente sabe.
A um juiz, para além de integridade pede-se bom-senso. O bom-senso, pelo menos, de não participar em eventos errados, no lugar errado, na hora errada.
Neste caso, não faltariam assessores capazes de desempenhar a missão.
Para a pergunta inocente (ou ingénua) de Edson Vidigal, "se eu devo no cheque especial, não posso julgar os Bancos?" a resposta é só uma: claro que não. O presidente do Supremo Tribunal de Justiça deveria sabê-lo.
Juiz em causa própria não julga, decide a favor. Mesmo quando a causa própria se limita a "uma viagem de avião e algumas horas de hotel, sob auspícios da iniciativa privada", como diz na sua defesa.
Afinal, é também pelo grau de amplitude, pureza e intransigência da ética da, e na, magistratura de uma Nação que se pode estimar o grau de civilização ou de barbárie de um Povo.